Fonte: Última Instância. Data: 07/04/2011.
Autor: Guilherme Varella
O recente estágio da discussão sobre a reforma da Lei de Direito Autoral (Lei 9.610/98), encabeçada pelo MinC (Ministério da Cultura), suscita alguns questionamentos, quiçá preocupações. Dentre os principais: quem de fato o Ministério da Cultura quer envolver nesse debate? Seu objetivo é ampliar ou reduzir o diálogo? Propõe, o MinC, o movimento de expansão da discussão a outros segmentos, igualmente atingidos pela legislação autoral, ou vai restringi-la apenas aos “criadores” e seus “representantes”?
A dúvida é pertinente, pois se passaram mais de seis anos de construção coletiva do projeto de reforma da LDA, de debate público efetivo acerca dos principais pontos e temas que deveriam ser nela abarcados. Construção coletiva por incluir vários segmentos historicamente negligenciados nesse processo, como o movimento de professores e estudantes, as organizações da sociedade civil ligadas à educação e à democratização da comunicação, os coletivos de cultura digital, as entidades de defesa do consumidor e os indivíduos em geral, incentivados a participar, independentemente de qualquer requisito de institucionalidade. Isso tudo somado obviamente ao setor artístico, criativo, autoral e da indústria cultural. Todos esses setores encorajados a participar pelo próprio Ministério da Cultura. Todos esses atores legitimados para opinar e devidamente ouvidos pelo governo.
Ora, se a legislação autoral é fator preponderante para a concretização de diversos outros direitos do cidadão, como o acesso ao conhecimento, à informação e aos serviços e produtos culturais, constata-se: natural que esse debate seja o mais ampliado possível. Essencial a inserção de campos os mais diversos na elaboração de uma nova lei. Importante que isso seja uma política de governo, fomentada pelo discurso dos governantes e por ações práticas, como a consulta pública, a qualificação do debate, com a realização de seminários e encontros com interfaces diferentes, e a manutenção de compromissos públicos assumidos.
Ocorre que, hoje, vislumbra-se o movimento contrário por parte do Ministério da Cultura. Desde o início do ano, a toada é de brecar o andamento do projeto de reforma da LDA, construído de forma democrática e transparente, com o pretexto de ouvir os artistas, os criadores, como se simplesmente eles não tivessem participado anteriormente desse processo.
Com essa postura, o MinC simplesmente desconsidera que grande parte desse trabalho teve a imprescindível contribuição da sociedade civil, da cultura e outros campos. “Reabre” a discussão, porém, deixando muito claro que voz terá mais peso a partir de agora. As aspas, logo atrás, evidenciam isso: o anteprojeto da reforma foi (re)colocado no site do MinC, para essa nova “audição” dos artistas, mas o relatório com todas as contribuições da população, assimiladas ou rejeitadas no texto, até agora não foi disponibilizado.
Esse reinício de debate já se dá, portanto, com falta de clareza, especialmente no que tange aos seus objetivos. A ideia de construir um projeto de revisão da lei autoral que a torne compatível com outros diplomas legais e outros direitos de cidadania será mantida? Por exemplo, na relação com a defesa do consumidor. A LDA atual permite vários abusos aos direitos dos consumidores, como a possibilidade de inserção de restrições tecnológicas nos produtos culturais, como CDs e DVDs, que impedem a livre e integral fruição do bem, já adquirido, sem qualquer finalidade de lucro; impede a interoperabilidade, de maneira que o consumidor pratica um ato ilícito quando passa uma música de seu computador pro tocador portátil; e impede a cópia privada, por exemplo, de um livro, para uso doméstico e para fins de estudo.
Fala-se muito, hoje em dia, em economia da cultura. Nesse terreno, dá-se uma interconexão muito clara entre a legislação autoral e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Se for possível falar em cadeias de produção e consumo culturais consolidados; ciclos diferenciados de criação, distribuição, circulação, difusão e fruição dos bens culturais; arranjos produtivos locais; sistemas e redes de trocas criativas; e novos modelos de comercialização digital. Se existe essa dinâmica, e se ela é central para o desenvolvimento do país, a ponto inclusive de e a recém-criada Secretaria de Economia da Cultura no MinC, essa dinâmica possui fornecedores de produtos e serviços culturais e os seus destinatários: os consumidores da cultura. A parte hipossuficiente, por essência, da relação, a ser protegida em todas as legislações que lidam com relações de consumo, como é o caso.
Para que essa dinâmica seja saudável e equilibrada, há que se compatibilizar LDA e CDC. E, mais que isso, é imprescindível a presença do Estado, como garantem os artigos 5º, XXXIII, e 170, V, da Constituição. Para a defesa do consumidor no mercado de consumo cultural, para impedir abusos, garantir a transparência e evitar práticas anticoncorrenciais, garantindo a liberdade de escolha, o CDC exige a supervisão do Estado, corroborando a Constituição. A Lei de Direito Autoral, não. Inexiste nela esse diálogo com outros diplomas legais, o que coloca a LDA num patamar quase de direito absoluto – caráter, inclusive, defendido pelas associações coletoras de direitos autorais, cuja atividade que não sofre qualquer tipo de controle social.
O exemplo do consumidor evidencia o alcance da LDA em outros campos. Outros poderiam ser citados: a necessidade de permissão da digitalização plena de acervos, para a educação e o patrimônio histórico; a própria cópia educacional, o xeroxnão comercial, para universitários; uma licença especial de execução de músicas para rádios comunitárias, na área da comunicação; ou a previsão de produção de obras com acessibilidade especial para pessoas com deficiência.
Tais demandas foram debatidas durante muitos anos e só puderam ser incorporadas ao projeto de reforma da LDA pelo espaço aberto e pela disposição do governo ao diálogo amplo, para além da “exclusiva” atenção ao segmento artístico. O projeto, contudo, está por hora encostado. A freada foi comemorada pelas associações coletoras de direitos autorais mundo afora, da qual fazem parte o Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais (Ecad) e afins. E a Ministra tem recebido cumprimentos especiais da indústria fonográfica e do Ministério de Comércio Exterior dos Estados Unidos. Por aqui, não existem motivos pra comemorar.
Aos consumidores, pessoas com deficiência, estudantes, professores, bibliotecários, militantes da liberdade de expressão, artistas e autores, ficam as dúvidas: haverá a oportunidade de diálogo franco entre todas as áreas afetas aos direitos autorais? O novo projeto equilibrará legislações e interesses diversos? A reabertura do processo de revisão é real, pra fazê-lo andar? Ou trata-se de um processo protocolar, de cunho protelatório? Estão todos novamente convidados a participar ou apenas alguns são os legítimos participantes do processo? Em suma, para todos aqueles que participaram efetivamente, durante esses anos, da construção colaborativa de uma nova e mais justa LDA, fica a interrogação: que fim dará a reforma?
*advogado do Idec.
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