Fonte: Publishnews. Data: 12/06/2012.
Autor: Felipe Lindoso.
URL:
http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=68931
A revista do
Massachusetts Institute of Technology, o MIT, publicou recentemente
um artigo sobre o projeto da Harvard University de digitalizar os acervos das
bibliotecas universitárias. Comentar sobre o assunto vem bem a calhar no
contexto das discussões sobre cópias não autorizadas e digitalizadas para
difusão pela internet. Quem se dispõe a analisar o assunto com seriedade logo
se vê diante da imensidade de problemas e soluções alternativas, que vão muito
além da digitalização não autorizada de uns tantos livros de ciências sociais.
O projeto de Harvard descende
diretamente do falecido Google Book Search, o projeto que Larry Page imaginou
em 2002 e que pretendia digitalizar todos os livros impressos no mundo. Sim.
Todos. Só assim, dizia o cofundador do Google, a empresa poderia cumprir sua
missão de tornar toda a informação mundial “universalmente acessível e útil”.
O Google desenvolveu uma
tecnologia que permitia o escaneamento ultrarrápido das páginas de um livro,
com lentes que compensavam a curvatura das páginas provocadas pela
encadernação. Aperfeiçoou também seus programas de Optical Character
Recognition (OCR), para os mais variados formatos de letras e idiomas, de modo
a permitir o funcionamento dos mecanismos de busca.
Quando lançou publicamente o
projeto, em 2004, Page conseguiu de imediato a adesão de cinco das maiores
bibliotecas do mundo, incluindo as de Harvard e Oxford. E quase imediatamente
começaram as reações contrárias ao projeto, geralmente focando no ponto de que
este daria à companhia uma posição altamente favorável para a futura
comercialização do conteúdo digitalizado, prejudicando outras empresas. Além
disso, a concentração dessa informação pelo Google abriria o espaço para a
censura e controle da difusão da informação. Note-se bem: comercialização do
conteúdo, que passaria a ser acessível, mas não gratuito. O projeto do Google
incluía a posterior comercialização – através de e-books – dos livros. E tudo
com o devido pagamento de direitos autorais.
A Association of American
Publishers e a Author’s Guild – o sindicato dos autores dos EUA –,
imediatamente protestaram, considerando que a empreitada, mesmo se permitisse a
consulta a apenas trechos de livros na pesquisa, constituía um enorme ataque
aos direitos autorais.
O Google propôs um acordo,
envolvendo o pagamento de direitos autorais e a venda de assinaturas para
acesso ao conteúdo integral dos livros das bibliotecas, o que só aumentou a
resistência. Universidades europeias se recusaram a participar e outras
iniciativas começaram a ser esboçadas.
Alguns analistas consideram que,
se o Google continuasse a escanear com base no “fair use” da Convenção de Berna
– e da legislação dos países signatários – e usasse o material tão somente para
indexar informações, poderia ter prosseguido. Mas, ao propor o acordo, que
teria chancela do judiciário, se meteu num pântano legal que terminou por
liquidar o projeto.
Além da acusação de tentativa de
monopolizar a digitalização mundial dos livros, alguns pontos finos da
legislação de direito autoral se tornaram pedras no meio do caminho do projeto.
Um desses é o das “obras órfãs”. O que é isso?
Uma obra impressa é protegida
automaticamente pela legislação, mesmo que seu autor, ou autores, não a registrem
nos escritórios de direitos autorais de cada país. Mesmo entre as obras
registradas, há uma quantidade delas das quais se sabe o nome do autor, mas não
se o próprio ainda está vivo e se o prazo de vigência da proteção legal ainda
está ativo. Isso sem falar dos livros publicados, mas que saíram do mercado –
as leis de D.A. são, hoje, universalmente retroativas. Essas são as “obras
órfãs”. Como se pode perceber, mesmo que houvesse a disposição de pagar
direitos por sua reprodução, seria muito difícil encontrar os beneficiários. O
Google propôs constituir um fundo que recolheria esses direitos até o
aparecimento dos autores ou a certeza de que haviam entrado em domínio público,
quando então esses recursos seriam revertidos para ampliação de acervos de
bibliotecas, programas de leitura etc.
Não adiantou. O acordo foi
definitivamente sepultado há alguns meses pelo judiciário dos EUA.
Mas a ideia da digitalização não
morreu.
Um dos críticos mais contundentes
do projeto do Google foi o historiador Robert Darnton. Sucede que Darnton foi
nomeado, em 2007, como diretor do sistema de bibliotecas da Harvard University.
A partir dessa posição, tenta por de pé o projeto da Digital Public Library of
America. Que, essencialmente, tem o mesmo escopo do projeto googliano:
digitalizar tudo.
Diz a matéria da revista do MIT:
“Se bibliotecas e universidades trabalhassem
juntas – argumentou Darnton –, financiadas por organizações filantrópicas,
poderiam construir uma verdadeira biblioteca pública digital da América. A inspiração
de Darnton não veio dos tecnólogos de hoje, e sim dos grandes filósofos do
Iluminismo. As ideias circulavam pela Europa e atravessaram o Atlântico no
século XVIII, impulsionadas pelas tecnologias da imprensa e dos correios.
Pensadores como Voltaire, Rousseau e Thomas Jefferson viam a si mesmos como
cidadãos da República das Letras, uma meritocracia de livres pensadores que
transcendia as fronteiras nacionais. Era uma época de grande fervor e
fermentação intelectual, mas a República das Letras era ‘democrática apenas em
princípio’, como Darnton apontou em um ensaio na New York Review of Books: ‘na
prática era dominada pelos bem nascidos e pelos ricos’.”
E prossegue a matéria:
“Com a internet, podemos finalmente retificar
essa iniquidade. Ao colocar cópias digitais online, argumentou Darnton, podemos
abrir as coleções das grandes bibliotecas do país para quem quer que tenha
acesso à rede. Podemos criar uma ‘República Digital das Letras’ que seria
realmente livre e aberta e democrática e que nos permitiria ‘efetivar os ideais
do Iluminismo a partir dos quais foi fundado nosso país’.”
Com um acadêmico de tanto
prestígio como Darnton à frente, e princípios tão nobres a justificá-lo, a
suposição é de que o projeto poderia avançar sem dificuldades.
Ledo engano.
O sepultamento da proposta de
acordo do Google aumentou as expectativas e o projeto de Darnton ganhou apoios
importantes, e mecanismos substanciais de financiamento. Começou também a
ganhar objeções.
Em maio passado, uma reunião do
grupo dos Chief Officers of State Library Agencies (grosso modo, os
responsáveis pelos sistemas estaduais de bibliotecas, se tal coisa existisse no
Brasil) aprovou uma resolução pedindo que a DPLA mudasse de nome. A razão? Ao
se apresentar como “a” Biblioteca Pública do país, a DPLA reforça a “crença
infundada de que as bibliotecas públicas podem ser substituídas em 16.000
comunidades nos EUA por uma biblioteca nacional digital”, e que isso
dificultaria ainda mais a obtenção de recursos orçamentários para essas
bibliotecas. Parou por aí? Não. O projeto foi acusado de arrogante na presunção
de que uma única biblioteca pudesse satisfazer as necessidades diferentes do
público e de pesquisadores, que são muito diferentes.
E o dissenso continuou. Por
exemplo: os arquivos serão centralizados em servidores próprios ou os
mecanismos de busca apontariam para os servidores das bibliotecas afiliadas?
Que outros materiais, além de livros, seriam incluídos na DPLA? E como a DPLA
se apresentaria ao público: com acesso direto ou como uma “câmara de
compensação” entre as várias bibliotecas, transferindo o trânsito para os
respectivos websites? No mesmo número da revista do MIT que anuncia o projeto
de Darnton, é publicado também outro,
de autoria de Brester Kahle e Rick Prelinger, que afirma que o projeto
centralizador de Darnton pode ser tão perigoso para a liberdade de expressão
quanto era o do Google. E Kahle é o fundador do Internet Archive. E os
lançamentos? Darnton, por exemplo, diz que só deveriam ser digitalizados os
livros com mais de dez anos de lançamento, para “ficar de fora das questões
comerciais”. E os metadados, essenciais para a pesquisa e que, como “banco de
dados”, são eventualmente produzidos por outras empresas, que prestam serviços
para editoras e bibliotecas, e têm uma proteção específica de uso?
Porque, de fato, voltou com toda a
força a questão dos direitos autorais. Para o Google e para a DPLA, essa é uma
questão não resolvida. Para alguns dos envolvidos, só poderia ser solucionada
com medidas internacionais, como uma revisão da Convenção de Berna que
diminuísse o tempo de vigência da proteção (hoje é de 70 anos após a morte do
autor, na maioria dos países) e estabelecesse outras exceções, todos os dois
assuntos muito controversos. Não apenas por parte das editoras e dos próprios
autores – os de sucesso cuidam muito bem do seu patrimônio! –, mas também pelos
estúdios e outros produtores de materiais audiovisuais.
Além dos direitos autorais, está
subjacente também uma questão de patrimônio. Afinal, essas bibliotecas foram
financiadas com recursos de várias fontes para aquelas universidades, e não apenas são seu patrimônio como
geram renda, de diferentes maneiras, para seu sustento.
O pano de fundo disso tudo é o das
condições para a apropriação social da produção intelectual individual. É certo
o grande avanço, desde o Iluminismo, do reconhecimento da autoria: a obra é a expressão de um
labor intelectual próprio e personalíssimo (ainda que possa ser coletiva), e
isso gera direitos do(s) autor(es) sobre sua fruição, inclusive financeira,
ainda que por um período determinado de tempo (que foi aumentado
progressivamente nos dois séculos e meio desde que as primeiras leis de direito
autoral foram promulgadas). O “domínio público” se estabelece depois desse
período de apropriação individual.
Não vale o argumento de que cada
autor produz suas obras através das leituras de outros, já que, de qualquer
maneira, cada leitura gera uma apropriação e uma expressão individual do
conjunto dos conteúdos. Se colocarmos dez “intelectuais leitores” lendo os
mesmos dez livros, o que cada um deles irá concluir e eventualmente produzir a
partir dessa leitura certamente será diferente da produção dos demais.
Na verdade isso tudo remete à
grande questão da apropriação individual do fruto do trabalho versus a
apropriação social, coletiva. Algo que outros filósofos debatem também desde o
século XVIII, e que encontrou uma expressão sintética no século XIX: “De cada
qual segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”, disse o
filósofo de Trier, um tal de Karl Marx.
Mas isso exige outro tipo de
sociedade, de organização social. Por enquanto, no regime capitalista, o caldo
engrossa tanto com a apropriação do trabalho físico quanto do trabalho
intelectual.