Fonte:
O Estado de S. Paulo. Data:
22/03/2013.
Autora:
Maria Fernanda Rodrigues.
Bibliotecários
do Reino Unido ficaram em polvorosa com uma recente declaração do escritor inglês
Terry Deary. Autor de obras infantis e juvenis, publicadas inclusive no Brasil,
ele disse: "As bibliotecas tiveram seu momento. Elas são uma ideia
vitoriana e estamos na era digital. Ou mudam e se adaptam ou deverão ser
fechadas. Muito da chiadeira atual é sentimentalismo". A realidade de seu
país em crise, onde as bibliotecas sofrem com corte de verba e encerramento de
atividades e brigam com editoras pela questão do empréstimo de e-books, é bem
diferente da brasileira.
Aqui, a
briga é para zerar o déficit de bibliotecas. De acordo com o Censo Nacional de
Bibliotecas Municipais, de 2010, 20% das cidades não contam sequer com uma sala
de leitura. O dado é ainda mais preocupante nas escolas públicas. O Censo
Escolar mostrou que 72,5% ficam devendo esse espaço para seus alunos - existe
uma lei que determina que até 2020 essa questão seja resolvida. Outro desafio é
a conquista de novos leitores. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no
Brasil, 75% dos brasileiros jamais pisaram numa biblioteca. O mesmo levantamento
mostrou que 20% dos entrevistados frequentariam uma, se houvesse livros novos.
Mas nada convenceria 33% a fazer isso.
"A
biblioteca não é um organismo à parte na constituição de uma sociedade: a
biblioteca é reflexo dela e responde a ela. Por isso é que temos tão poucas
bibliotecas no Brasil", comenta Maria Antonieta Cunha, especialista no
assunto e desde 2012 à frente da Diretoria do Livro, Leitura e Literatura,
órgão subordinado à Fundação Biblioteca Nacional. Mas o Brasil é, claro, um
país grande e desigual, e também no que diz respeito ao acesso a livros vive,
simultaneamente, passado, presente e futuro. Enquanto uns correm para resolver
essas questões básicas e urgentes, outros veem o momento em que será possível
emprestar um livro digital de uma biblioteca e lê-lo no e-reader, tablet ou
celular.
Isso
ainda está distante das bibliotecas de obras gerais - algumas oferecerem livros
em domínio público para download, mas isso é simples. É, porém, realidade para
estudantes da FMU (SP), Universidade de Passo Fundo (RS) e Cândido Mendes (RJ),
entre outras, que usam o serviço da Minha Biblioteca, uma plataforma criada por
editoras concorrentes, mas que se uniram para desbravar esse mundo novo.
Participam
do consórcio quatro das cinco maiores do segmento CTP (Científico, Técnico e
Profissional): Saraiva, Atlas, Grupo A e Grupo Gen. São 4 mil títulos e 2
modelos de negócios. No primeiro, a instituição de ensino paga à Minha
Biblioteca um valor mensal por aluno para que eles possam ler, quando quiserem
e ao mesmo tempo, todos os títulos do acervo. No segundo, disponível a partir
de abril, a universidade escolhe quais títulos e quantos exemplares deseja
adquirir. Se optar por cinco exemplares de determinado e-book, por exemplo,
apenas cinco alunos poderão emprestá-lo simultaneamente, tal qual acontece com
o livro físico.
Quando
foi criada, há 18 meses, a Minha Biblioteca já tinha concorrente: a Biblioteca
Virtual Universitária, do grupo Pearson que agora conta com a parceria da
Artmed, Manole, Contexto, IBPEX, Papirus, Casa do Psicólogo, Ática e Scipione.
Lá, são 1.400 títulos. A Companhia das Letras, que pertence ao grupo Pearson,
também está no projeto. Mas não oferece seus títulos, e sim obras em domínio
público.
O
impasse é que, fechando com a Minha Biblioteca ou com a Biblioteca Virtual
Universitária, seus estudantes só terão acesso aos livros das editoras
participantes, restringindo o uso de uma bibliografia completa e diversificada.
Ideal seria que as instituições tivessem as próprias plataformas e unificassem
os catálogos das editoras. Mas elas se ocupam hoje de preparar seus e-books
para difundir a produção de pesquisadores e alunos. Quem quiser lê-los, basta
fazer o download e já ganha o arquivo. Ou seja, uma operação um pouco diversa
do empréstimo de um livro. O modelo é incipiente, mas os números da editora
Unesp são animadores. Desde março de 2010, quando criou o selo digital Cultura
Acadêmica, já publicou 137 títulos exclusivamente em formato digital e
registrou mais de 299 mil downloads. Enquanto isso, nos Estados Unidos, Robert
Darnton, diretor da Biblioteca de Harvard, e sua equipe acertam os últimos
detalhes da inauguração, em abril, da gigante Biblioteca Pública Digital
Americana.
De
volta ao Brasil, há ainda universidades e escolas que dão tablets aos alunos -
caso da Estácio de Sá. A parceria para conteúdo é da Pasta do Professor,
projeto criado pela Associação Brasileira de Direitos Reprográficos para coibir
as cópias, e que tem a adesão de várias editoras.
A
questão da remuneração é apontada por editores como um dos principais entraves
para que o empréstimo de e-book para o público em geral tenha seu início no
Brasil. Este é um problema que ainda não foi resolvido nos Estados Unidos e
Reino Unido. Quando muito usado, o livro físico é substituído por um novo,
comprado da editora. A duração de um e-book é indefinida. Por isso, os preços
do produto são mais altos. Um lançamento em e-book pode custar às bibliotecas
de US$ 65 a US$ 85, pelo menos quatro vezes mais do que as livrarias vendem ao
consumidor.
O
imbróglio é acompanhado por casas brasileiras de fora do segmento CTP, e
editoras - como a Companhia das Letras, Intrínseca, Leya e as que integram a
Distribuidora de Livros Digitais (DLD), entre as quais Record e Objetiva -
ainda não se mobilizam pela causa. "Não temos planos imediatos para
oferecer serviços de empréstimo, mas sabemos que é uma questão de tempo",
diz Roberto Feith, presidente da Objetiva e do conselho da DLD. Ele conta,
porém, que a distribuidora já levantou modelos operacionais e financeiros de
negócio desenvolvido pelas principais editoras globais. "Existem modelos
bastante diferentes entre si, mas ainda não há um consenso ou modelo
predominante. Vamos observar essa evolução para, eventualmente, escolher a
melhor solução para nosso mercado", diz. Ao seu lado nessa investigação
está a Pasta do Professor.
Editoras
assistem e esperam, e livrarias se agilizam. "Não podemos falar muito
agora, mas certamente está no radar da Cultura oferecer serviços desse porte
com a Koko. Estamos estudando", adianta Rodrigo Castro, diretor comercial
da Livraria Cultura. É um projeto "para o ano", e deve incluir o
aluguel da obra toda ou de capítulos. Com essa iniciativa, a Cultura dá um
passo para o futuro ao mesmo tempo em que retorna às suas origens - foi
emprestando livros que Eva Herz começou o negócio da família. A Saraiva, que
tem o know-how do aluguel de filmes pela internet, também estuda o caso.
Enquanto
isso não se realiza, a Nuvem de Livros, criada pela Gol Mobile em 2011, segue
como a única biblioteca virtual para leitores que querem acompanhar as
novidades literárias. O problema é que ela se restringe a clientes da Vivo ou
de alguns outros parceiros da empresa. Para ter acesso a cerca de 7 mil
conteúdos - livros representam 80% do acervo -, o assinante paga em média R$
4,99 por mês. Hoje, são 400 mil usuários, mas Roberto Bahiense, diretor de
Relações Institucionais, acredita que até o fim do semestre a biblioteca terá 1
milhão de associados. Até lá, a rede de ensino de duas cidades brasileiras terá
aderido ao projeto e dará senhas a seus alunos.
Quem
também se beneficia de bibliotecas virtuais são as pessoas com deficiência, já
que apenas 9% das bibliotecas do País têm livros acessíveis a elas.
"Nossas quase mil teleaulas já estão em libras e o próximo passo é adotar
o formato Daisy para livros", conta o diretor da Nuvem de Livros. Adotado
pelo MEC, o Daisy é um modelo internacional em que o livro vem em CD com duas
funcionalidades principais: a visualização em diferentes tamanhos e a narração
do texto. "A popularização do e-book beneficia pessoas cegas e com baixa
visão", comenta Susi Maluf, gerente-geral da Fundação Dorina Nowill.
Outro
futuro
Nem só
de tecnologia é feita a biblioteca do futuro. Uma grande discussão sobre seu
papel e a função do bibliotecário e dos mediadores de leitura ganha espaço no
Brasil, que emprestou da Colômbia o modelo de biblioteca parque, espaço
comunitário de convivência em torno do livro. A pioneira no País é a de
Manguinhos, aberta em 2010. Depois vieram a de Niterói e a da Rocinha, que
estava agitada na sexta-feira véspera de carnaval: crianças corriam cantando
pelos cinco andares do prédio, faziam fila para usar a internet, se
esparramavam nos sofás para ver um filme. Enquanto isso, José Cleyton, de 15
anos, tímido, chegava para devolver os cinco livros que tinha emprestado e para
escolher mais alguns. Ele é leitor novo - descobriu o mundo da literatura há
seis meses, quando a biblioteca foi inaugurada e foi conferir a novidade com o
irmão.
Apesar
da insistência da mãe para que lesse mais e dos conselhos de um professor, que
dizia que a leitura tornava as pessoas mais inteligentes, Cleyton, assim como
muitos garotos de sua idade, achava chato ler. "Quando vi esse monte de
livro pela primeira vez, fiquei muito impressionado. É tudo muito bonito. Se
não fosse isso, ia ficar em casa e nunca ia saber que ler era tão bom",
diz o garoto que vai descobrindo, a seu tempo, os títulos nas coloridas
prateleiras. "Primeiro olho a capa para ver se o livro tem personalidade.
Aí começo a ler o texto e o livro me personaliza", conta, encantado. Suas
preferências? "Gosto de ler comédia e ação".
A falta
de familiaridade de Cleyton com termos literários causaria estranheza a
bibliotecários tradicionalistas, mas dá pistas de quem é - ou de quem poderia
ser - a nova geração de frequentadores de biblioteca. Reflete também a
filosofia do espaço que ele frequenta. "Nossas bibliotecas têm o livro
como ponto de referência de conhecimento. Nelas, os usuários têm a
possibilidade de ler um roteiro, participar de uma oficina de narrativas
cênicas e de assistir ao filme. O desenvolvimento cultural fica mais fácil
assim", explica Vera Saboya, superintendente da Leitura e do Conhecimento
da Secretaria de Cultura do Estado do Rio. O modelo continua dando cria. Será
inaugurada ainda este ano um outro exemplar no Morro do Alemão. E já está quase
pronta a reforma da Biblioteca Pública do Estado, que reabre logo mais com essa
nova filosofia. A ideia é ter ainda bibliotecas parque nas principais regiões
fluminenses.
Construída
onde antes era o presídio do Carandiru, a moderna Biblioteca de São Paulo
completou esta semana três anos e já pensa em ampliar seus espaços para ter,
por exemplo, mais salas de cursos. Lá, os visitantes podem usar os e-readers da
instituição, mas a oferta de e-books é restrita à obras de domínio público.
"Os e-readers não têm tanta procura como imaginávamos", conta Adriana
Cybele Ferrari, coordenadora da Unidade de Bibliotecas e Leitura da Secretaria
da Cultura do Estado de São Paulo. "Muitos associam o futuro das
bibliotecas com o livro eletrônico, mas o futuro é elas acontecerem de verdade
como espaços de pessoas, de difusão, de reunião, de conhecimento", avalia.