Fonte: Carta Capital. Data: 4/03/2013.
Na imensa
caixa de vidro tenuamente iluminada por lâmpadas de LED reina uma suave
penumbra. O sistema de ar condicionado e um filtro purificador mantêm afastados
dois inimigos: poeira e umidade. O convidativo silêncio cria o clima propício à
contemplação. Nas prateleiras acomodadas em três andares superprotegidos
encontra-se um tesouro da cultura brasileira, a coleção de 60 mil volumes e
perto de 32 mil títulos garimpados ao longo de 82 anos pelo empresário José
Mindlin, doada por ele e sua mulher, Guita, à Universidade de São Paulo em
2006.
O homem
que nutria um ciúme amoroso por seus livros morreu sem ver finalizado o templo
erguido no campus para acomodar seu fabuloso acervo, cujas portas serão abertas
ao público dia 23 de março. O complexo que abriga a Brasiliana USP, livraria,
café, auditório e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) consumiu 130 milhões
de reais (obtidos por meio de parcerias da USP com a FAPESP e o BNDES) e seis
anos de construção.
“Foi um
grande investimento para abrigar a coleção com dignidade. O prédio seguiu os
moldes da mais alta qualidade de construção, automação e mobiliário e ajuda a
mostrar um caminho de excelência para o País”, diz o diretor da Brasiliana USP,
Pedro Puntoni. Ao longo da trajetória, não foram poucas as críticas acerca do
alto custo do projeto. “Bilhões são gastos em obras na cidade, por que não
podemos ter uma biblioteca que faça jus à coleção que abriga?”
O belo
edifício de linhas elegantes foi pensado como um abrigo para os livros, um
centro de pesquisa e de atividades culturais e também uma plataforma
tecnológica, com um laboratório de digitalização e acesso livre das imagens
dessas obras raras por meio da internet, explica o historiador, envolvido com o
projeto desde o início. Quando José Mindlin e Guita optaram por doar a coleção,
que no íntimo ele sempre soube não poder ser propriedade de poucos, dada a sua
dimensão e importância, o professor István Jancsó, diretor do Instituto de
Estudos Brasileiros, ficou à frente do projeto e convocou Puntoni para ajudar
na tarefa de digitalização. Com a morte de Mindlin, aos 95 anos, em fevereiro
de 2010, e de Jancsó, aos 71 anos, um mês depois, Puntoni assumiu a direção.
“Foi o ponto mais difícil da jornada. Não esperávamos que eles não vissem a
obra concluída. Foi duro viver o luto e continuar.
Entre
os modelos a inspirar a Brasiliana USP
estão a belíssima Beinecke Rare Books and Manuscript Library, da Universidade
de Yale, em Connecticut, e também a biblioteca da Brown University, em Rhode
Island, ambas nos Estados Unidos. “São bibliotecas especiais, cujo foco é,
sobretudo, preservar o acervo, formado por livros únicos, maravilhosos, e
garantir o acesso a esses conteúdos raros”, diz Puntoni. Do ponto de vista
arquitetônico, a Brasiliana que saiu das pranchetas de Eduardo de Almeida e
Rodrigo Mindlin Loeb, neto do empresário, remete bastante a Beinecke. “A
arquitetura foi pensada para que se tivesse uma visão de tudo. Lá os livros
ficam numa caixa de vidro fechada, a nossa é uma caixa aberta.”
Para os
que, como o argentino Jorge Luis Borges, acreditam que o paraíso seja uma
biblioteca, esta é uma filial do Éden. Também aqui o impulso de tocar é
irresistível, embora impraticável. A raridade das obras e sua fragilidade fazem
com que a Brasiliana USP necessite impor regras especiais. Nenhum exemplar da
coleção poderá ser emprestado. “As pessoas vão poder manusear alguns livros
aqui, mas de acordo com normas que os curadores determinarão, como o uso de
luvas.” Uma das primeiras tarefas do conselho da biblioteca será formular os
procedimentos. “Tentamos conciliar essa dimensão mais restritiva, natural e
comum no mundo todo, com a ideia de universalização do acesso. Isso nos é
permitido com a tecnologia da digitalização e da informação.” Nesse quesito, o
laboratório foi o primeiro na América Latina a contar com o robô Kirtas, capaz
de ler 2,4 mil páginas por hora. O escâner, que no início do projeto custava
220 mil dólares, hoje custa 80 mil.
Os livros
de domínio público encontram-se disponíveis na internet
(www.brasiliana.usp.br), entre eles obras completas de Joaquim Manoel de
Macedo, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, José de Alencar, Castro Alves,
Casimiro de Abreu e outros. Puntoni avalia que um terço dos 32 mil títulos que
compõem a coleção estará na web. No caso dos livros em que o direito de
propriedade intelectual esteja em vigência, a biblioteca oferecerá uma imagem
digital. Um exemplo citado como icônico é o datiloscrito da primeira versão de Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. “É um documento extraordinário da
cultura brasileira e universal. É único, todo anotado e rabiscado pelo autor.
Temos de oferecer esse exemplar para leitura, mas o curador decidirá quantos
leitores poderão manusear este livro por ano.”
Os
livros de Guimarães Rosa e de outros
autores que morreram há menos de 70 anos não são passíveis de digitalização. “A
Lei de Direito Autoral proíbe a reprodução de qualquer obra nessas condições,
mesmo que seja apenas para preservação. Nenhum dispositivo limita o direito do
autor em benefício da preservação e isso é trágico”, avalia Puntoni. Como
contraponto, menciona a legislação estabelecida na Inglaterra em 1956. “Se a
British Library quiser microfilmar ou digitalizar as partituras originais dos
Beatles para acesso aos pesquisadores, pode fazer isso. Não poderá publicar na
internet, o que também não é nosso objetivo. Nossa ideia seria oferecer acesso
digital a um documento raro e evitar o manuseio.”
O
precioso acervo que José Mindlin começou a construir aos 13 anos tem valor
inestimável, sob todos os aspectos. Houve um momento, nos anos 1980, em que se
noticiou a oferta de 25 milhões de dólares por parte de uma universidade
americana. “Ele sempre recusou. Foi uma existência de garimpagem, de esperar o
momento certo.” A generosidade do colecionador tornou-se conhecida. “Gerações
de editores devem ser agradecidas, pois ele permitiu reproduzir imagens e
emprestou títulos para exposições sem jamais cobrar. Queria que os livros fossem
de todos e foi identificado por seus pares como o homem que tinha uma arca, que
preservaria os objetos para o futuro”, conta o diretor. O gosto alucinado pelos
raros exemplares manifestava-se revestido de cautela somente em alguns casos.
Um dos xodós era a primeira edição de Viagem ao Brasil, de Hans Staden
(1557), disponível online, os
livros da imprensa régia e dos primeiros poetas brasileiros, como Cláudio
Manoel da Costa. Esse título e outros como Marilia de
Dirceo (1792), de Tomás Antônio Gonzaga, estarão em exposição até 28 de
junho. “Esses, Mindlin exibia nas mãos dele.”
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