Autoria: Filipe Vilicic.
Fonte: Veja. Data: 05/12/2015.
O americano David Naggar é um dos protagonistas da revolução que
atinge a indústria editorial e os hábitos de leitura. Sua ligação com o mercado
de livros vem do berço - sua mãe, Jean, é escritora e agente de renome. Logo
após se formar em marketing ele já passou a trabalhar em grandes editoras, como
na nova-iorquina Random House. Em 2009, foi para a Amazon, onde ainda está,
como vice-presidente de conteúdo do Kindle. Na nova casa, impulsiona a
digitalização de livros, quadrinhos, revistas, tudo que se lê.
Sob seu comando, a empresa deixou de publicar e-books apenas em
seu e-reader e passou a disponibilizar o catálogo em aplicativos para
computadores, smartphones e tablets de concorrentes. Ele também investe na
produção de "indies", os autores que se autopublicam, sem o
intermédio de editoras, pela internet. Esta, inclusive, é hoje uma das
especialidades da Amazon, dona da plataforma KDP, por onde os escritores podem
disponibilizar, gratuitamente, seus livros no Kindle. Daí nasceram best-sellers
como 50 Tons de Cinza e Perdido em Marte.
Em visita ao Brasil, Naggar concedeu a seguinte entrevista ao
site de VEJA. Nela, prevê como será o futuro da leitura e crava que não se
trata do fim das tradicionais casas de publicação, mas, sim, de uma
reconfiguração completa do mercado.
Como a digitalização de livros, revistas,
tudo que se lê, transformou os hábitos de leitura?
De repente, passamos a ter em um único dispositivo, como o
Kindle, ou tablets e smartphones, o acesso a milhões de títulos, possíveis de
serem lidos depois de 60 segundos, o tempo que se leva para baixá-los. Esse
imediatismo, o acesso quase instantâneo, democratizou a leitura como nunca
antes ocorreu na história. Por exemplo, antes era muito difícil ter acesso a
algumas obras estrangeiras, como as estritamente em inglês ou alemão, em países
como o Brasil. Era preciso esperar anos pela tradução, ou meses para que uma
encomenda chegasse com o livro. Agora, consegue-se o título em segundos. Além
da facilidade do acesso, trata-se de uma revolução que também afeta diretamente
a forma como lemos. É possível, por exemplo, ler em um smartphone enquanto se
espera na fila do banco ou do dentista. Sem ter de lembrar de carregar um
montante pesado de papel com si. Mais que isso, toda sua biblioteca poderá
estar disponível em sua mão, no aplicativo do celular. Essa é uma transformação
essencial, que adapta a leitura profunda, mesmo de livros complexos, ao mundo
contemporâneo. Há vinte anos, um indivíduo ia a uma livraria com o único
intuito de comprar livros. Não havia nada mais competindo por sua atenção.
Hoje, ao ligar o smartphone, o tablet, o computador, escolhe-se se quer gastar
tempo checando o Facebook, vendo um vídeo no YouTube, jogando Angry Birds ou
lendo. A literatura passou a competir com um universo imenso de opções baratas,
quando não gratuitas, de entretenimento. Para o livro ter chance de vencer
nessa disputa por tempo e atenção, é necessário estar onde o leitor está. Ou
seja, oferecer a ele, também, a opção de ler, de forma barata e prática, no
mesmo dispositivo a que recorre continuamente para outras atividades.
Trata-se de uma mudança que afeta apenas o
leitor, ou também a forma como escrevemos?
Pense no KDP, da Amazon (o sistema de autopublicação da marca,
na qual escritores disponibilizam livros online sem intermédio de editoras).
Desde que nasci vivo no mundo da escrita, já que minha mãe é agente literária.
Antes de vir para a Amazon, fui alto-executivo em editoras tradicionais. Como
sempre funcionava a lógica de publicar um livro? Quase todo mundo tem a ideia
de escrever algo. Porém, poucos são aqueles que conseguem um agente para ajudar
a publicá-lo. Digamos que seja 5% do total. Desses, uma porcentagem ainda menor
convence uma editora a trabalhar com sua obra. Ou seja, era um negócio para
poucos. Com a internet, e inovações como o KDP, os intermediários podem ser
eliminados. Se uma editora não dá atenção ao que alguém escreveu, o autor pode
simplesmente colocar a obra online, e disputar de igual para igual com
best-sellers na Amazon.com. Isso muda a lógica do mercado literário. Sabia que
J.K. Rowling, autora de Harry Potter, foi rejeitada trinta vezes antes de uma
editora, pequena, aceitá-la? E se ela tivesse desistido no vigésimo
"não"? Deixaríamos de ter as histórias de Harry Potter. Quantos não
abdicam de seus projetos frente à rejeição? Com o mundo online, foram abertas
novas alternativas. Best-sellers como 50 Tons de Cinza e Perdido em Marte surgiram
nesse novo modelo, via KDP. Hoje, 30% dos e-books mais vendidos da Amazon são
de "indies" (termo para "independentes", os autores que se
autopublicam). Pessoas que provavelmente nunca teriam espaço na velha forma de
publicação ficaram ricas utilizando as possibilidades contemporâneas.
É o fim das editoras tradicionais?
De forma alguma. As editoras têm um papel insubstituível e
realizam um trabalho incrível junto aos autores. Entretanto, elas precisam,
sim, se adaptar ao mundo moderno. Passou-se a ter mais alternativas a leitores
e escritores. Logo, a concorrência é maior. São vários os efeitos disso. Por
exemplo, no Brasil, historicamente, livros são muito caros. Hoje, essa
estratégia não funciona mais. Há opções baratíssimas de entretenimento na internet,
inclusive de leitura. Por isso, editoras brasileiras têm se visto compelidas a
baixar preços. Valem, como sempre foi, as leis econômicas. Porém, repito, não é
o fim para elas. O que ocorreu, em uma analogia, é que antes só tinha um
restaurante na cidade, com 50 clientes. Com a digitalização, passaram a ser 1
000, com milhares de clientes. No caso, "restaurantes" são
plataformas de publicação. Os "clientes" são os autores e leitores. O
efeito, que sentimos agora, é que a indústria literária nunca esteve tão
saudável quanto hoje.
Se os benefícios são para todos, por que
algumas editoras, como a francesa Hachette, além de autores best-sellers, se
queixam do modelo proposto pela Amazon?
Principalmente da estratégia de baixar preços radicalmente de
e-books, em comparação com o valor de versões físicas. A resposta da Amazon a
essas queixas é "olhem para o futuro". Caso queiram competir para
valer com tudo a que hoje o leitor tem acesso, a exemplo do Facebook, é preciso
ser mais acessível. Isso inclui vender livros mais baratos, algo possível de se
fazer, com bom lucro, no mundo online. Caso não baixe o preço, o leitor
dedicará seu tempo a outra coisa.
Em resposta à chegada da Amazon nessa
indústria, algumas editoras adotaram práticas como a publicação atrasada de
títulos de e-books, em comparação com suas edições físicas. Essas estratégias
realmente aumentam as vendas?
De forma alguma. Tanto que nenhuma grande casa de publicação
manteve essa prática nos últimos anos, apesar de termos ciência de que algumas
editoras brasileiras pensam em fazer isso. A questão é que, com esse método, a
mensagem que se passa para o leitor é: "você precisa adaptar seus hábitos
de leitura ao que queremos". Acha, mesmo, que alguém, como um adolescente,
acostumado a smartphones e tablets, irá transformar seu cotidiano para comprar
um livro na livraria só porque não tem a opção online? Nossas estatísticas
comprovam que isso não ocorre. Se não há a opção digital, o leitor que gosta
deste formato toma uma de duas atitudes. Ou ele arranja uma versão pirateada na
internet - e, garanto, há muitos sites que disponibilizam isso -, ou escolhe
outra coisa para ler. Aí, ocorre um outro problema na estratégia. A editora vai
lá e gasta um monte com marketing no lançamento de um título. Porém, só o disponibiliza
em livrarias. Depois, quando finalmente decide ter uma versão digital, não há
mais dinheiro para dar gás na divulgação. Ou seja, aquele cliente que não
queria comprar a edição física, e optou por gastar seu tempo com outra
atividade, nem fica sabendo quando o que queria ler chega à internet. Em
resumo, a editora só perderá vendas com tal tática.
No Brasil, e-books representam cerca de 5% do
mercado de livros. Por que aqui essa tal revolução da leitura não está
ocorrendo tão rápido?
Não acredito nisso. Para começar, esse número, de 5%, não é bem
interpretado. E-books não têm muito sucesso, por exemplo, no ramo educacional.
Tenho certeza que se as porcentagens forem fatiadas, e se considerar somente
literatura regular, haverá um aumento substancial de nossa penetração. Mais que
isso, na conta não se consideram os "indies". É outro fator que
alteraria o cenário. Valeria acrescentar ainda as obras em língua estrangeira,
muitas vezes disponíveis apenas pelo online. Por fim, de qualquer forma, a
nossa representatividade no mercado tem aumentado 40% ao ano. Isso é
surpreendente, principalmente quando se leva em conta a quão antiga e
estabelecida é a indústria literária.
Há muitos críticos da leitura digital, como o
escritor e pesquisador americano Nicholas Carr, para quem e-books e similares
podem destruir o hábito de imergir em uma obra por horas. O senhor acredita que
tablets e smartphones têm, mesmo, privilegiado apenas leituras rápidas e
superficiais?
De forma alguma, pois as pessoas se adaptam. Quando se olha a
nova geração, é notável como está se acostumando a ler em telas menores. Porém,
ainda em leituras profundas, de livros extensos. Acredito, mesmo, que a escolha
do que se lê no digital, ou no físico, caberá a cada cliente. Uns irão preferir
obras de ficção digitais, e de não-ficção em versões tradicionais. Com outros,
será o contrário. Iremos nos adaptar. E a tecnologia também se moldará a nós.
Para alguns, tablets e e-readers podem
parecer fadados a perdurar por pouco tempo, frente a novos gadgets que surgem,
como os relógios inteligentes ou os óculos computadorizados. O senhor acredita
que, no futuro, os hábitos de leitura e escrita vão mudar novamente?
A lógica é, na verdade, simples. Quando a forma como as pessoas
acessam conteúdo muda, é preciso também que o conteúdo se transforme. Ou ao
menos sua apresentação. Na China, por exemplo, está em voga um novo tipo de
literatura, onde escritores diversos se revezam para tecer uma mesma história,
que nunca acaba e é divulgada restritamente online. Experiências assim surgem
quando aparecem novas plataformas. Sempre será desta forma. Como vai ser no
futuro? Não tenho ideia. Mas essa lógica não mudará.