22 de jul. de 2011

O bibliotecário do rei

Fonte: Isto É. Data: 15/07/2011.

URL: http://www.istoe.com.br/reportagens/146717_O+BIBLIOTECARIO+DO+REI

 

Conheça Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que trouxe a biblioteca de dom João VI para o Brasil e se tornou um dos primeiros cronistas do Rio de Janeiro

Marcos Diego Nogueira

A história é contada por vitoriosos – certamente pelos seus protagonistas e quase nunca por seus figurantes.

Na vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, quem foi motivo de relatos heróicos foi o futuro rei dom João VI e sua mulher, Carlota Joaquina. Mas outro personagem, um figurante, teve seu papel no rumo dos acontecimentos. Ele se chamava Luís Joaquim dos Santos Marrocos (1781-1838), era um mero bibliotecário, e também veio para o País devido à invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. Sua missão, contudo, foi mais prosaica: Marrocos ficou encarregado de trazer para o Rio de Janeiro os 60 mil volumes da Biblioteca Real, orgulho da corte e retida no cais de Belém por três anos – na pressa, foram deixados para trás os livros e a prataria. Napoleão levou o que era de metal – deixou os papéis. Marrocos cuidou bem deles. Embora não tenha sido objeto de qualquer retrato, o bibliotecário gostava de escrever cartas e por meio de sua correspondência com a família, que ficou em Lisboa, fica-se conhecendo preciosos detalhes do cotidiano carioca no século XIX, agora recontados no livro “O Guardião dos Livros” (Casa da Palavra), da argentina radicada em Portugal Cristina Norton.

Tema de um capítulo no best-seller “1808”, de Laurentino Gomes, Marrocos não era dado a grandes pensamentos em suas missivas. “O que diferencia suas cartas de outras desse período é que elas são depoimentos simplórios de uma pessoa comum dando informações aos familiares”, afirma Gomes. “Não são relatos diplomáticos sobre os passos dos reis como estamos acostumados.” Foi o autor de “1808” que presenteou Cristina Norton com uma transcrição das 186 cartas, editada em 1936. Elas tratam de assuntos cotidianos como a violência no Rio de Janeiro, a doença de dom João VI ou a compra de um escravo por 98 mil réis. O presente foi bem dado. Cristina diz ter se apaixonado pelas histórias contadas pelo personagem – e foi por isso que escreveu “O Guardião de Livros”. Para não conferir à obra um ar de compêndio escolar ou histórico, ela adicionou à trama um “pouco de sal e pimenta”: “Tudo o que se refere ao que Marrocos viveu é não ficção.Evidentemente, inventei certas coisas, já que não sei se ele as disse exatamente com aquelas palavras”, diz a autora. Ainda assim, passagens reais como a história do escravo comprado por Marrocos dão a impressão de serem fictícios e esse jogo só enriquece a obra.

O escravo, que gostava de vigiar seu senhorio nos cochilos tirados por ele após o almoço, foi adquirido por Marrocos pouco depois da sua chegada ao Brasil. “Um aspecto interessante de sua personalidade é o seu processo de conversão”, diz Gomes. “Sua primeira correspondência trata o Rio com ódio, como um lugar que ele não suportava.” Aos poucos, contudo, foi se adaptando à vida da colônia até contar em uma carta três anos depois: “A aversão a este país é um grande erro de que há muito tempo me considero despido”. À época, o bibliotecário conheceu Anna Maria de São Thiago Souza, uma jovem de 22 anos com quem teve três filhos – e suas cartas exprimem o bom humor dos apaixonados. “Dez anos depois, Marrocos escreveu a última carta à família dizendo que Portugal era um atraso e o Brasil, o futuro”, diz Gomes. Marrocos apoiou a Independência do Brasil em 1822 e foi o escrivão da primeira Constituição brasileira. A despedida da condição de colônia custou aos bolsos de dom Pedro I a fortuna de dois milhões de libras esterlinas, mas um terço desse valor foi destinado à compra da Biblioteca Real, a mesma que havia sido transportada e se encontrava sob os cuidados de Marrocos. Foi esse tesouro bibliográfico que deu origem à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em cujo acervo se encontram raridades como a “Bíblia de Mogúncia”, a primeira a trazer a data, lugar de impressão e nome dos impressores, Fust e Schoeffer, ex-sócios de Gutenberg. Já os originais das cartas escritas pelo bibliotecário estão na Real Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Estranha coincidência: esse era o mesmo local que, no passado, abrigava os livros pelos quais Marrocos nutria tanta dedicação.

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