Autor: Sérgio Mangas
Responsável pela Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos, Portugal.
URL: http://www.bad.pt/noticia/2011/08/25/o-papel-politico-da-biblioteca-publica/Ao longo dos anos as bibliotecas públicas têm vindo a assumir vários papéis. Estes vão desde a biblioteca-memória, preocupada basicamente em conservar o património escrito para as gerações futuras, à biblioteca-estudo, suporte da vida académica e escolar, ou à biblioteca-lazer, ocupada em múltiplas actividades de animação com o propósito de incutir o gosto pela leitura, para chegar a outros papéis mais actuais. Papéis esses que exigem, actualmente, às bibliotecas e aos bibliotecários que as dirigem respostas concretas face aos novos desafios e necessidades de informação das pessoas. Hoje precisamos de uma biblioteca-cidadão. Esta nova biblioteca, que tarda em chegar a Portugal, deve-se constituir como instrumento de transformação social. Vejam-se os exemplos dos Parques Biblioteca de Medellín, na Colômbia, ou da Biblioteca de Santiago, no Chile, casos de estudo excepcionais que apontam caminhos verdadeiramente inovadores e progressistas para as demais bibliotecas públicas.
É certo que a existência desta biblioteca-cidadão exige novas competências e outro perfil profissional. Mas exige, sobretudo, que os bibliotecários abandonem a falsa neutralidade que reclamam e se comprometam na formação e desenvolvimento da cidadania, o que supõe a defesa de um modelo sociedade menos desigual e corrupta. Neste sentido, o papel político surge como algo de essencial e que encontra sustentação nos principais objectivos que são internacionalmente atribuídos às bibliotecas públicas, a saber: a promoção da leitura, o acesso local à informação e a defesa da liberdade intelectual.
Comecemos pela promoção da leitura. Penso que uma sociedade da informação e do conhecimento, como hoje é conhecida a nossa sociedade, implica uma sociedade de leitores. Mas aprender a ler e a escrever é, antes de mais, aprender a ler o mundo e aprender a compreender o seu contexto, não através da manipulação repetitiva ou lúdica das palavras, mas através de um processo dinâmico e dialéctico em que a linguagem e a realidade se articulem. Ou seja, a leitura deve ser uma actividade emancipadora, um instrumento essencial para que os indivíduos se possam reconhecer como cidadãos, isto é, como detentores de direitos e deveres. Dito de outro modo: a leitura deve ser capaz de dotar os indivíduos de uma maior consciência política. Concepção completamente distinta daquela que vê a leitura como actividade de lazer ou relacionada com a aprendizagem e aquisição de conhecimentos e que, em boa verdade, é aquela que predomina nas múltiplas actividades de promoção e animação da leitura que se fazem por cá. Em contrapartida, criar leitores autónomos e críticos seria assumir a leitura como prática social que deve formar cidadãos politicamente mobilizados, conscientes dos seus deveres e com argumentos para reivindicar os seus direitos. Talvez por isso a “Constituição da República Portuguesa” não faça parte do Plano Nacional de Leitura.
Outro aspecto da dimensão política do trabalho das bibliotecas públicas prende-se com o acesso local à informação. A biblioteca pública é um serviço aberto a todos com um papel fundamental na recolha, organização e difusão da informação. Neste âmbito, as bibliotecas públicas têm uma particular responsabilidade, quer na defesa da memória local, através do chamado fundo local, quer na criação de serviços capazes de oferecer informação específica, para que as pessoas, no seu dia-a-dia e na relação que estabelecem com as diversas instituições, possam conhecer e exercer os seus direitos e deveres, conhecido como serviço de informação à comunidade. Estes aspectos são de enorme importância, já que são eles que irão determinar, em boa parte, o tipo sociedade que os bibliotecários querem construir.
O contributo que as bibliotecas públicas podem dar para o desenvolvimento local a partir de serviços culturais, sociais e educativos concretos dirigidos à comunidade tem um enorme potencial político do qual o bibliotecário nem sempre tem consciência. Este é um potencial político que reside fundamentalmente na capacidade de cada biblioteca conseguir mobilizar as pessoas em torno de um determinado território. Daí a importância, por exemplo, do fundo local. Os recursos documentais que compõem estes fundos são muito específicos, reflectem a actividade e as características de uma determinada localidade, concelho ou região. O valor do fundo local reside, justamente, no carácter único e no papel vital que desempenha para o conhecimento da história, cultura e tradições da comunidade, contribuindo, deste modo, para o fortalecimento da identidade cultural dessa mesma comunidade. Além do mais, esta é uma colecção irrepetível em outras bibliotecas, tornando-se, assim, o bem informativo mais valioso que as bibliotecas públicas podem oferecer ao mundo globalizado da Internet.
Finalmente, a defesa da liberdade intelectual. Garantir o pluralismo das colecções e defender o livre acesso à informação com o objectivo de contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática e transparente é tudo menos uma atitude neutral, imparcial e apolítica. Esta dimensão política já está patente no tão citado “Manifesto da UNESCO/IFLA sobre as bibliotecas públicas” (1994), em que logo na sua abertura se constata que a liberdade, a prosperidade e o desenvolvimento da sociedade são valores fundamentais. Para logo a seguir ser feito um apelo, a bibliotecários e educadores, que tais valores: “Só serão atingidos quando os cidadãos estiverem na posse da informação que lhes permita exercer os seus direitos democráticos e ter um papel activo na sociedade. A participação construtiva e o desenvolvimento da democracia dependem tanto de uma educação satisfatória, como de um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação.”
Mas se todos os manifestos, declarações e outras recomendações apontam para uma biblioteca pública mais interventiva na comunidade, esta intervenção só será possível se os bibliotecários se reconhecerem como actores políticos. Ou não serão a defesa dos direitos humanos ou o combate à censura, por exemplo, acções políticas? Neste sentido, vale a pena lembrar o “Manifesto da IFLA sobre transparência, bom governo e ausência de corrupção” (2005). Naquele que é, até ao momento, um dos seus manifestos mais políticos. A IFLA lembra que a biblioteca é uma instituição necessária ao exercício da democracia, que deve ajudar na defesa dos direitos civis, na promoção da cidadania e no combate à corrupção.
Como refere a IFLA: “A corrupção solapa os valores sociais básicos e a confiança nas instituições políticas, e ameaça o império da lei. Ela cria um ambiente para os negócios em que só o corrupto triunfa. Ela atrapalha o trabalho científico e a pesquisa, enfraquece o papel das profissões e obstrui a emergência da sociedade do conhecimento. É uma das maiores contribuições para o aparecimento e prolongamento da miséria humana e a inibição do desenvolvimento. A corrupção é mais bem sucedida sob condições de segredo e ignorância geral.”
Mas aquele organismo vai ainda mais longe, e pede às bibliotecas que, através da suas colecções e dos diversos serviços que prestam à comunidade, informem os cidadãos sobre os seus direitos e garantias, ofereçam materiais sobre assuntos filosóficos, sócio-económico ou políticos, que promovam o debate em torno destes temas e que, em colaboração com outras entidades, que lutam pela liberdade intelectual e pelos direitos humanos, aconselhem, promovam e denunciem todas as formas de corrupção e manipulação da informação.
Ainda a propósito da liberdade intelectual. Se a Internet e outras tecnologias de informação constituem uma grande oportunidade para o desenvolvimento e a liberdade das sociedades, também é certo que a informação é hoje alvo de um controle e manipulação cerrados da parte de governos e grupos económicos diversos. Os meios de comunicação social tornaram-se mais poderosos do que nunca e o seu alcance é global e escapa, por isso mesmo, à soberania dos Estados.
Por outro lado, sabemos que empresas e governos quando pretendem afirmar o seu poder contratam agências de publicidade, a fim de criar um ambiente favorável aos seus interesses, e usam as tecnologias de informação e os meios de comunicação social para influenciar a opinião pública. A globalização e a concentração de empresas ligadas à comunicação e às indústrias culturais condicionam, cada vez mais, o que vemos, escutamos e lemos. Nas colecções das bibliotecas, por exemplo, abundam cada vez mais materiais produzidos pelos grandes grupos editoriais e de comunicação, em detrimento de outros, menos comerciais e superficiais, impondo assim, subtilmente, uma visão da realidade parcial e limitada.
O perigo de monopólio e uniformização dos conteúdos culturais e da informação é já uma realidade. O pensamento único não admite dissidentes e todos parecem estar de acordo que este modelo económico é inevitável. A mais perigosa das ilusões é pensar que não existe alternativas. Parece pouco admissível, por exemplo, que estes grandes grupos de comunicação estejam interessadas em incentivar uma reflexão crítica sobre as desigualdades de classe, de origem ou de género. Presumo que para as multinacionais (mas também para os governos), o livre acesso à informação, a liberdade de expressão ou o incentivo ao debate e à reflexão crítica sejam pouco adequados quando o objectivo é formar trabalhadores, consumidores ou cidadãos dóceis e submissos.
Face a este cenário, em que a liberdade intelectual parece ameaçada e a censura assume formas subtis, tão subtis que parece não fazer sentido falar dela mais do que nunca as democracias necessitam de bibliotecas públicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário