Fonte: O Globo. Data: 28/11/2011.
Autora: Cristina Tardáguila.
Dez meses depois de causar comoção no meio artístico ao anunciar que iria rever o projeto de lei de direito autoral formatado pelo ex-ministro da Cultura Juca Ferreira em seus últimos dias no cargo, a ministra Ana de Hollanda encaminhou à Casa Civil no fim de outubro sua versão final do projeto.
O envio do documento, feito após aprovação de um grupo interministerial, transcorreu sob total sigilo, obedecendo a uma determinação do Ministério da Cultura (MINC).
Nesta semana, O GLOBO teve acesso ao projeto de lei proposto por Ana e a toda a documentação que o acompanhou. O conteúdo do projeto final surpreende pelo alto grau de semelhança com a versão que havia sido proposta pelo ex-ministro Juca Ferreira no fim de 2010.
Em quase um ano de trabalho, sofreu alteração substancial apenas cerca de 15% dos artigos, incisos e alíneas. Em linhas gerais, a lei submetida pelo ministério à aprovação da Casa Civil segue três direções. Primeiro, pretende corrigir erros conceituais que embaralham a interpretação da legislação atual (a de número 9.610, de 1998) e sobrecarregam a Justiça de processos. Depois, busca incluir informações que haviam sido omitidas ou descritas de forma insuficiente na lei em vigor. Por fim, dá ao MinC o poder de supervisionar as entidades de gestão do direito autoral do país, apesar de não lhe permitir cassar a licença de funcionamento.
Especialistas em direito autoral antecipam debate no Congresso essas instituições. Apenas o Judiciário poderá fazê-lo.
Se o projeto de lei que o Ministério da Cultura (MinC) enviou à Casa Civil fosse uma obra autoral, seria um plágio, tamanha é sua semelhança com a versão do ex-ministro Juca Ferreira.
Esta é a conclusão do professor e pesquisador em direito autoral da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Allan Rocha, depois de ler a documentação a que O GLOBO teve acesso e constatar que só 15% dos artigos sofreram alterações substanciais.
— Mas essa semelhança é uma ótima notícia — ele pondera. — Grande parte dos avanços obtidos na gestão passada, inicialmente criticados por Ana de Hollanda, continua. Se esse projeto passar assim, os autores terão conquistado maior proteção em suas relações contratuais e ampliado seus direitos. Para empresas e investidores, haverá mais segurança jurídica em suas atividades. Já a sociedade terá sido ouvida em sua demanda por acesso justo e legal aos bens culturais.
Rocha queixa-se, porém, da parte sobre combate à pirataria digital.
— A lei estabelece que basta uma notificação extrajudicial para que um provedor tenha que tirar uma obra do ar. Isso afeta direta e negativamente o direito de defesa.
Ecad e Creative Commons
Rocha e outros seis especialistas em direito autoral foram convidados a avaliar o projeto de Ana e a antecipar o debate que deve tomar o Congresso.
Bruno Lewicki, vice-presidente da Comissão de Direito Autoral da OAB-RJ, concorda que a versão de Ana é “idêntica” à de Juca, e que, por isso, poderá pôr o Brasil “no mapa-múndi do direito autoral contemporâneo”:
— Pontos que já foram polêmicos viraram consenso, como a ampliação dos usos livres.
Mas ele acha que “se perdeu a oportunidade” de criar uma fiscalização rigorosa do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e das associações de gestão coletiva.
— O MINC amenizou — diz.
Sydney Sanches, presidente da Comissão de Direito Autoral e Propriedade Industrial do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), discorda:
— O sentimento que fica (após a leitura de trechos da lei) é que há um desejo do poder público de intervir ou controlar o direito dos criadores, e isso causa extrema insatisfação. A gestão coletiva foi criada pelos e para os criadores, e eles são e devem continuar sendo os gestores. Não me parece lógico um projeto que possua lacunas e que admita a interferência indiscriminada do Estado. O projeto é paternalista e demagógico.
Alexandre Negreiros, especialista em direito autoral que assessora o senador Randolfe Rodrigues na CPI do Ecad, elogia a ideia de o MinC poder autorizar associações a atuar na gestão coletiva do direito autoral e exigir que elas apresentem documentos anualmente para continuar ativas. Mas queria mais:
— O novo projeto estabelece uma supervisão estatal dependente do judiciário. Apenas simula a regulação — dispara.
Pablo Ortellado, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP), alerta para um risco:
— Ao prever um registro único de obras administrado pelo MinC, o projeto contraria a Convenção de Berna, que livra o direito autoral de entraves burocráticos, e emperra licenciamentos livres na internet, como o Creative Commons.
Ortellado aprovou, por outro lado, a permanência do artigo que estava na lei de Juca e que previa reprodução, tradução e distribuição livres de trechos de obras no ambiente acadêmico. A medida lhe parece “crucial”.
Daniel Campello, advogado de direitos autorais e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que o projeto de Ana sustenta os avanços negociados com Juca em relação a contratos:
— O texto define o que é a cessão de direitos, uma lacuna na lei atual, delimita a figura da licença e dá ao autor maior ingerência na administração de suas obras. É o bem-estar do autor em primeiro lugar, exatamente como acertado com Juca Ferreira.
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