Fonte: Valor Econômico - Online
O princípio de "neutralidade de
rede" causa controvérsias no mundo todo. No Brasil, a tramitação do
Projeto de Lei do chamado Marco Civil da Internet gera resistências ao
substitutivo do deputado federal Alessandro Molon, que está previso para ser
votado nas próximas semanas.
A Comissão Federal de Comunicações
(FCC, na sigla em inglês), órgão regulador das telecomunicações nos Estados
Unidos, adotou o princípio da neutralidade de rede por meio do "Open
Internet Order" em 2010. A regulação se traduz em três regras básicas: a
da transparência, que exige que operadores de redes de banda larga informem em
detalhes suas práticas de gerenciamento; a da proibição do bloqueio
injustificado de conteúdo legal, aplicações, serviços e dispositivos não
prejudiciais; e norma da não discriminação desarrazoada, que veda discriminar a
transmissão de tráfego de rede considerado legal.
Considerada bastante ousada pelo
mercado, a regulação do FCC enfrenta a irresignação dos operadores de rede,
liderados pela Verizon, que patrocina uma ação judicial na corte de apelações
do distrito de Columbia. Discute-se a competência institucional para o FCC
impor ao mercado uma regulação tão restritiva de direitos e os possíveis
prejuízos que a mera afirmação da regra teria sobre o mercado de redes de banda
larga.
Texto substitutivo abre as portas para
um nível de interferência política na internet até hoje inexistente.
A operadora irresignada defende, ainda,
seu direito de buscar um "mercado de duas pontas", ou seja, o direito
de vender ao consumidor, de um lado, e ao gerador de conteúdo, do outro (Google
e Netflix etc). O mercado de duas pontas - como no sistema de pagamentos dos
cartões de crédito, que cobram comissões dos usuários e dos estabelecimentos
comerciais -, é considerado pelos operadores de banda larga a solução comercial
para o aprimoramento das aplicações mais exigentes de capacidade de
transmissão, tais como os filmes em HD, por exemplo. O próprio Netflix já
anunciou que estuda uma política de preços diferenciados a partir da oferta de
serviços de melhor qualidade.
Recentemente empossado como novo
chairman do FCC, Tom Wheeler também parece concordar com esse ponto de vista,
considerando suas declarações de que o futuro da internet nos reservará
diferentes alternativas de precificação e arranjos variados de serviço, entre
os quais a possibilidade de que um grande provedor de conteúdo pague para
garantir um desempenho melhor da rede para seu tráfego.
No âmbito da Comunidade Europeia, onde
apenas a Holanda e a Eslovênia já adotaram regras sobre o assunto, o tema não
perde protagonismo. A Comissão Europeia propõe aos 28 países membros uma grande
reforma das regulações nacionais de telecomunicações para promover a extinção
dos custos de roaming dentro da Comunidade, permitindo-lhes desfrutar,
finalmente, do mercado único digital. A Comissária Neelie Kroes, encarregada do
tema no âmbito na Comissão, defende, no mesmo pacote, o fim do emprego das
técnicas de "degradação" ou "bloqueio" de tráfego,
sabidamente empregadas no gerenciamento de redes. Segundo ela, seus efeitos vem
sendo considerados claramente anti-competitivos no mercado europeu, sobretudo
na arbitragem de tecnologias ou soluções adotadas como "vencedoras"
pelas operadoras.
A Comissão Europeia, entretanto, admite
que os prestadores de serviços de banda larga ofereçam serviços
"diferenciados", de maneira que usuários que não necessitem de maior
capacidade de tráfego paguem um plano de serviço mais barato, enquanto outros
usuários sejam livres para escolher soluções mais especializadas e,
eventualmente, mais onerosas.
Na verdade é a administração do tráfego
- associada aos investimentos na rede -, que permite a garantia do padrão de
qualidade dos serviços. Esta é, de fato, a tensão por trás da noção de
neutralidade de rede: quanto menos gerenciada for uma rede, menos garantia pode
existir para a qualidade ou a especialidade dos serviços que nela trafegam. E,
além disso, uma menor possibilidade de equacionamento comercial dos
investimentos necessários para aplicações mais sofisticadas, que implicam maior
capacidade de banda disponível.
A proposta de redação do princípio da
neutralidade de rede atualmente discutida no Brasil reconhece essa tensão entre
neutralidade de rede e qualidade do serviço nas redes de telecomunicação. Por
isso o artigo nono do projeto admite as atividades de gerenciamento
justificáveis sob o ponto de vista técnico. Ocorre que o texto substitutivo do
deputado Molon dá um passo além e atribui a um futuro decreto presidencial a
prerrogativa de definir as práticas de administração técnica da rede que serão
toleradas. Trata-se de uma solução que abre as portas para um nível de
interferência política na internet até hoje inexistente.
É evidente a inconveniência prática da
proposta. A administração de redes de banda larga tem uma dimensão técnica e
uma dinâmica que resultará claramente prejudicada pelo enrijecimento inevitável
do processo de regulamentação sugerido.
Uma regulamentação desse tipo poderia
promover a padronização de processos de gestão técnica e, portanto, acabaria
por inibir o papel da competição entre os prestadores para a oferta de níveis
diferenciados de qualidade dos serviços. Como consequência, os usuários poderão
acabar privados do direito de escolha dos serviços que lhes convém, sendo
obrigados a usufruir de um único padrão de serviço.
O potencial de uso das redes de banda
larga pela sociedade ainda contém inúmeras possibilidades que merecem ser
experimentadas antes de se possa justificar uma regulação tão restritiva.
Esperemos pela manifestação final do Congresso Nacional.
Eduardo Ramires é sócio fundador do
escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.
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