Autoria: Raquel Cozer.
Fonte: Folha
de S. Paulo. Data: 21/01/2014.
Acervos
de livros raros nem sempre recebem do Estado a atenção devida, mas são mina de
ouro para quem entende do assunto. A combinação desses fatores, descaso e
valor, leva a crimes milionários. Exemplo notório disso ocorreu em 2012, quando
o italiano Marino Massimo de Caro foi preso por furtar mais de mil livros da
Biblioteca Girolamini, instituição napolitana da qual tinha sido nomeado
diretor meses antes.
No
Brasil, bibliotecários e investigadores afirmam que furtos e roubos de livros
raros se multiplicaram em dez anos, embora não seja possível mensurá-los –
sobretudo devido ao silêncio de vítimas, que não raro só descobrem os crimes
quando as obras reaparecem. Mais de dez grandes casos foram noticiados no país
desde 2003. Em vários, há um denominador comum, segundo os investigadores: um
ex-estudante de biblioteconomia acusado de comandar uma quadrilha em todo o
país (veja alguns casos abaixo).
Esse
cenário que tem como predadores amantes dos livros, gente que em teoria
gostaria de preservá-los, inspirou a americana Allison Hoover Bartlett a
escrever O Homem que Amava Muito os Livros, lançado pela Seoman no
último semestre. O livro acompanha, ao longo da última década, a história do
ladrão John Charles Gilkey e do “bibliodetetive” Ken Sanders. “Em séculos de
furtos do gênero, os grandes criminosos foram clérigos ou bibliotecários, gente
apaixonada por livros. Uns fazem isso por dinheiro; outros, pela impressão de
que os colegas não lhes dão o devido valor”, diz a jornalista à Folha.
Gilkey
tem como alvo vendedores de livros raros e como método o uso de números de
cartões de crédito alheios. Foi preso e solto mais de uma vez, e sempre se
beneficiou do sigilo que os colecionadores, constrangidos pelos furtos, mantêm
sobre os casos.
Ápice
“O
ano de 2003 não é apenas um ápice [no roubo de obras raras no Brasil]. Há ali
uma alteração de perfil”, escreveu a pesquisadora Beatriz Kushnir, diretora do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, em artigo de 2009.
Referindo-se
à descoberta, pela Polícia Federal, do furto de 2.000 itens do Itamaraty, no
Rio, em 2003, ela diz que o caso “aponta para um novo alvo: papéis históricos,
mais fáceis de transportar”. “Até chegar a livros e documentos, há uma
evolução. No roubo de arte sacra, é mais fácil mapear a origem. Livros e documentos
são suportes com mais de uma cópia, o que facilita a desova da mercadoria”,
afirma Kushnir à Folha. Ela fez pós-doutorado no tema depois que, em
2006, descobriu um furto de mais de 3.000 itens do Arquivo Geral.
Parte
do acervo levado, como 87 gravuras de Jean-Baptiste Debret (1768-1848),
reapareceu em 2007, quando foi preso pela segunda vez o homem que delegados da
PF definem como o maior criminoso do gênero no país hoje.
Banca
de livros
Laéssio
Rodrigues de Oliveira, 41, estudou biblioteconomia na Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo e, no início dos anos 2000, teve uma banca
de livros usados perto da Biblioteca Mário de Andrade. Foi detido pela primeira
vez em 2004, após denúncia de um vendedor que comprara dele, por R$ 2.000, De
Medicina Brasiliensi (1648), de Willem Piso. O livro, avaliado em até R$
70 mil, pertencia ao Museu Nacional.
Quando
a polícia localizou Laéssio, achou com ele itens de instituições como o Arquivo
Histórico de Blumenau e a Mário de Andrade. Meses depois, estava em liberdade.
“Creio que 90% dos casos de furto do gênero no Brasil têm a ver com Laéssio e a
quadrilha dele. Comete de furtos, passando-se por pesquisador, a assaltos”, diz
o delegado da Polícia Federal Fabio Scliar, que afirma ter interceptado cartas
dele, de dentro da prisão, a comparsas de vários Estados.
Também
delegado da PF, Alexandre Saraiva, responsável pela investigação que resultou
na segunda prisão de Laéssio em 2007, destaca o conhecimento demonstrado por
ele – tanto sobre obras quanto sobre o funcionamento de instituições –, o que o
leva a crer que haja ajuda de funcionários nos crimes.
Dessa
prisão, por tentativa de assalto à Casa de Rui Barbosa (em 2008, ainda detido,
ele foi condenado por furto no Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico),
Laéssio foi libertado no final de 2012. Meses depois, Beatriz Kushnir recebeu
cinco pacotes, com o nome do escritor João do Rio (1881-1921) como remetente,
com alguns dos livros furtados em 2006 no Arquivo Geral. “Minha hipótese é que
há um depósito onde ele guarda o que não conseguiu comercializar. Espero que
seja possível localizar esse depósito. Lá estará o acervo de várias
instituições”, diz. Saraiva diz que é preciso que as instituições reforcem sua
segurança. E ressalta a necessidade de se investigar os receptadores – em geral
“pessoas de classe altíssima”. “Esse tipo de crime acontece sob encomenda.”
Muitas vezes, o material sai do país.
Laéssio
responde hoje a mais de dez inquéritos. Após quase um ano em liberdade, foi
detido novamente no fim de 2013, acusado de ser o mentor de um assalto à mão
armada ao Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) de Campinas. Está hoje no
Centro de Detenção Provisória de Hortolândia.
***
“É
praxe acusar Laéssio de todo e qualquer roubo”
Procurado
pela Folha, Laéssio Rodrigues de Oliveira respondeu, via Coordenadoria
de Unidades Prisionais da Região Central do Estado de SP, “não [ter] interesse
em conceder qualquer tipo de entrevista a esse jornal referente aos motivos de
sua prisão ou qualquer outro fato”. Ele está preso desde 18 de novembro no
Centro de Detenção Provisória de Hortolândia, acusado de organizar um assalto à
mão armada contra o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas.
Até
outubro, o acusado era representado pelo advogado José Clevenon Alves Bezerra,
que disse à Folha, por carta, ter se afastado do caso após a Polícia
Civil de Campinas indiciá-lo, “indiretamente, como associado criminosamente a
Laéssio”. Sobre o ex-cliente, diz que “já é praxe das polícias (Civil e
Federal) acusarem Laéssio de todo e qualquer roubo ou furto de obras de arte e
livros raros”.
“Após
um roubo contra o Instituto de Botânica da USP [em 2012], Laéssio foi acusado
de mentor intelectual, mesmo estando preso em Bangu em regime fechado, e
diversos meios de comunicação, inclusive a Folha, publicaram matérias
acusando-o, sem qualquer prova, de comandar crimes de dentro da cadeia.”
***
Raquel Cozer é colunista da Folha
de S.Paulo
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