Fonte: Brasileiros. Data: 21/05/2015.
Autoria: Marisa Midori Deaecto*
“Se tem uma biblioteca com
jardim, você tem tudo.” A passagem de Cicero (106 a.C.-43 a.C.) se situa em um
contexto particularmente importante para a história da cultura romana. O
próprio poeta organizara pelo menos duas coleções particulares. A primeira foi
reduzida a brasas e a outra, ao que parece, sobreviveu ao seu patrono. É que as
crises políticas e as guerras faziam sucumbir não apenas a energia dos homens,
mas também seus livros.
Ocorre que Roma viveu nesse período
um surto de bibliotecas. O modelo era Alexandria. Conhecemos a afeição especial
que Julio Cesar (100 a.C.-44 a.C,) devotara a essa cidade brilhante, cravada às
margens férteis do Nilo. Ele não ignorava a importância que a dinastia dos
Ptolomeus devotara a esse projeto grandioso de conservar os melhores livros do
mundo. Era conhecido o cuidado dos reis para com a coleção, as acomodações do
edifício, seus bibliotecários e os gastos necessários para manter e fomentar as
estantes (ou nichos) onde eram depositados os volumes. Da mesma forma, não se
ignorava a generosidade com que remuneravam seus empregados e como recebiam os
sábios com um lauto banquete.
Julio Cesar cobiçava Alexandria, o
Museu, os livros e sua musa, Cleópatra (69 a.C.-30 a.C.). Mas não descuidava de
Roma e de sua vida cultural. Pretendera implantar na capital latina uma
biblioteca pública, seguindo o modelo alexandrino. Nomeara Cicero como mentor
intelectual do projeto. A ideia vingaria mais tarde, noutra conjuntura. Pouco
importa. Na verdade, salta aos olhos a preocupação de um homem belicoso, figura
política de grande proa e de pretensões imperiais, com uma instituição
destinada a prover os cidadãos de boa leitura. Pois era disso que se tratava. É
certo que as bibliotecas gozavam nesse momento de uma aura elitizada, senão
hedonista. Jardins e bibliotecas se compunham dentro das mansardas de romanos
endinheirados. Dirá Seneca (4 a.C.-65 a.C.), não sem um grau de despeito, que
bibliotecas e termas eram ornamentos requisitados entre os novos ricos, muitos
deles analfabetos. Havia, contudo, espaço para recintos mais austeros, nos
quais a leitura era um fim, embora ela não dispensasse um jardim e boas
companhias. A moda pegou tanto que, às vésperas de sua queda, em 476, Roma
contava com 29 bibliotecas públicas.
O número não surpreende mais do que a
certeza da vitória dos livros, estes mesmos que periclitaram noutros tempos.
Durante a Alta Idade Média, por exemplo, as invasões assolaram as cidades, seus
homens e seus livros, relegando bibliotecas opulentas a coleções mirradas,
encerradas em mosteiros distantes. A ação desses estadistas da Antiguidade
espanta ainda mais diante da constatação de que cidades brasileiras ainda são
desprovidas de bibliotecas. Pior, muitas fecham. Morrem de inanição. Ao
dissertar sobre a natureza do papiro, Plinio, o ancião (23-69) lembra que o
“papel é essencial para o desenvolvimento da civilização, ao menos para fixar
suas lembranças”. De forma análoga, pode-se dizer que quando se fecham as
portas de uma biblioteca, portas da civilização ficam cerradas. O que resta? O
vazio da lembrança.
*Professora da
Universidade de São Paulo. Autora de O Império dos Livros: Instituições e
Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011,
448 páginas). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional,
2011; Prêmio Jabuti, 2012; e Edições e Revoluções – Leituras Comunistas no
Brasil e na França (Cotia: Ateliê Editorial, 2013, 334 páginas). Para ler mais,
entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
Link curto: http://brasileiros.com.br/lVX0M
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