Autor: Felipe Lindoso
Mário de Andrade, cuja morte há 70 anos
está sendo lembrada, criou o projeto do Ônibus Biblioteca em 1935, quando
diretor do então Departamento de Cultura do Município de São Paulo, embrião da
atual Secretaria Municipal de Cultura. A preocupação de Mário com o acesso da
população à cultura é ainda mais antiga, com o estímulo da criação da
biblioteca municipal que hoje leva seu nome, ainda na década de 1920, e da
Discoteca Municipal, que hoje homenageia Oneida Alvarenga, musicóloga que
trabalhou com o autor de Pauliceia desvairada.
O ônibus biblioteca partia de uma
premissa simples: "Em vez de esperar em casa pelo seu público, vai em
busca do seu público onde ele estiver". A frase é uma declaração de
princípio de uma política cultural voltada para abertura ao público, de
proporcionar a todos os cidadãos a oportunidade de ter acesso à leitura, o que
muitas vezes lhe é negado por condições econômicas, e também pela situação de
intimidação social que as pessoas muitas vezes sentem diante dos grandes
prédios de bibliotecas e museus, e também das livrarias.
Como toda iniciativa de política
pública, passou por muitos vaivéns. Interrompida em 1942 pela restrição ao
combustível na II Guerra Mundial, volta e desaparece mais algumas vezes nesses
80 anos. Mas, enquadrada dentro do sistema de extensão das bibliotecas, nunca
desaparece e renasce de suas cinzas cada vez mais forte.
Ano passado, os doze ônibus biblioteca,
que cumprem 72 roteiros mensais, tiveram mais de 600 mil acessos, entre
consultas e empréstimos, e matricularam mais de 21 mil novos usuários no
sistema municipal de bibliotecas públicas, que agora podem acessar qualquer uma
das unidades do sistema. Este ano, até abril, os dados compilados mostram já
quase 200 mil acessos, entre consultas e empréstimos, com quase 90 mil
frequentadores.
Os dados foram compilados pelo
bibliotecário João Batista de Assis Neto, coordenador do serviço de extensão do
SMBP, que inclui o Ônibus Biblioteca e que funciona junto à biblioteca Affonso
Taunay, na Mooca (Rua Taquari, 549).
Informações que recolhi quando
acompanhei a Maria José Silveira em sua participação em um dos roteiros, o que
foi no último dia 9 até o Jardim Ângela. Uma hora e meia de viagem da Mooca até
o Parque Nova Santo Amaro V, conjunto habitacional da prefeitura, no Jardim
Ângela, no ônibus conduzido pelo Sr. Manoel José Rodrigues, pernambucano de
Araripina que mora hoje em Barueri e toma cinco ônibus de casa até a garagem da
Viação Urubupungá, na qual trabalha há 15 anos.
Além do motorista, estava no ônibus
André Moura, coordenador da atividade, psicólogo formado pela Universidade
Federal do Pará.
No Jardim Ângela encontramos a equipe
dos atendentes do ônibus, três jovens que vão direto para o local: Raildo
Pinheiro, formado em Letras pela Universidade Estadual da Bahia (campus de
Conceição do Coité), Shirley dos Santos, graduada em Serviço Social pela
Uninove, e única paulista e paulistana do grupo, e Vânia Silva, formada em
História pela Universidade Estadual da Bahia (Campus de Vitória da Conquista). Maria
José Silveira é goiana e eu sou amazonense. Um corte significativo da população
da nossa megalópole. Acredito.
Montada a estrutura que vem no ônibus
(proteção solar, mesas e cadeiras, suporte para jornais e revistas do
dia/semana e avisos), saio para reconhecer a área. Estamos na frente de uma
escola estadual de onde vem um barulho, evidentemente de alguma atividade no
auditório. O conjunto Nova Santo Amaro V, com vários blocos, um belo campo de
futebol profissional, área de lazer, está limpo e é bem cuidado pelos
moradores. Mas, fora dali, o lixo se acumula. O recolhimento e a varrição, se
passam, devem passar muito raramente. É o primeiro e mais visível sinal da
diferença de tratamento do espaço urbano por parte da municipalidade.
Converso com um senhor que está sentado
na arquibancada. É um pai que foi levar o filho para uma aula de reforço –
particular, e o espera. O filho, diz ele, é bom nas coisas difíceis, gosta de
matemática, mas é “fraco” em português e história, e é nessas matérias que recebe
o reforço. Ele diz que o menino conhece o ônibus biblioteca e vai passar por
ali depois da aula.
Começam a chegar os leitores. A equipe
diz que o maior número de pessoas chega na hora do almoço, na saída das
escolas. De fato, é o que acontece. Mas, antes disso, vão pingando. Jovens, na
maioria. Algumas mães. Devolvem o que levaram na semana anterior e sobem na
área do ônibus em que estão os livros, para escolher mais alguma coisa.
Subo no ônibus para ver como se
comportam os leitores. Passam os olhos pelos livros, vários deles acabam se
detendo nas seções de ilustrados: revistas, mangás. Converso com uma dupla de
mocinhas e pergunto o que gostam de ler. “Histórias”. Acabo indicando a elas um
livro do Scliar, que elas levam junto com números de revistas.
Não há nenhum exemplar de livros da
Maria José no ônibus.
Os garotos, entretanto, se aproximar
para conversar com “a autora”. São perguntas semelhantes às feitas nas escolas
e nos encontros com alunos em bibliotecas: “como escreve”, de “onde aparecem as
histórias”, etc. E, curioso, muitos pedem autógrafos em pedaços de papel.
Em uma Bienal de São Paulo, anos atrás,
quando ainda tínhamos a Marco Zero, os meninos chegavam perguntando pelos
autores que eventualmente estivessem ali para “pedir um autógrafo”. Era o que
as professoras pediam que fizessem. Enfim, parece que a prática continua...
Quase duas da tarde, depois de algumas
dezenas de pessoas passarem por ali, é hora de voltar. Dessa vez, voltamos nos
ônibus do serviço público: uma van até o Terminal da M’Boi Mirim, um ônibus até
o Metrô Santa Rosa e de lá até nossa estação. Quase duas horas e meia.
Enquanto estávamos por ali, notamos
muitas vans escolares com crianças do bairro. São esses sinais contraditórios
que aparecem: os pais pagando o transporte escolar. Na van que tomamos, um
garoto com a camiseta da uma escola particular: “Little Sapiens”. Comércio
intenso na M’Boi Mirim, com lojas de cadeias conhecidas e lojas locais. Muita
gente.
Evidentemente o programa de ônibus
biblioteca pode ser aperfeiçoado. Um acompanhamento dentro do ônibus para
ajudar e orientar na escolha dos livros parece ser uma necessidade óbvia. O
pessoal está capacitado para fazer isso, e se receber uma formação mais
específica sobre os acervos, isso iria melhorar a diversidade das escolhas.
Outra falha evidente é não ter livros
dos autores nos ônibus. A Maria José tem vários títulos nas bibliotecas do
SMBP, e como ela certamente os outros autores que estavam programados para o
mês, inclusive o Milton Hatoum. Uma providência básica é levar os livros dos
autores para os ônibus que os receberão.
Os números do programa, entretanto,
falam por si, como vimos. E, nas bibliotecas, todos os meses é distribuída uma
edição de uma agenda com as atividades programadas para cada uma delas. A
agenda impressiona pela quantidade e pela qualidade da programação, que vai da
indefectível contação de história a palestras e encontros com autores, sessões
de cinema, saraus, música, cursos e oficinas, exposições.
Foi, assim, uma experiência muito
interessante e enriquecedora. Evidencia o esforço que se faz para tornar
acessíveis os mais variados tipos de atividades e produtos culturais nesse
locus por excelência de convívio que são as Bibliotecas Públicas e suas
atividades de extensão: ônibus biblioteca, ponto de leitura, bosque da leitura,
lá “pelas quebradas”, como diz o poeta Sérvio Vaz, o animador da Cooperifa –
que, aliás, está ali por perto.
É preciso ter mais desses programas, e
que as atividades sejam sempre aperfeiçoadas para cumprir cada vez melhor com
seus propósitos.
Fonte: PublishNews. Data: 17/06/2015.
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Felipe Lindoso é jornalista, tradutor,
editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da
Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do
CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da
UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para
a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br
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