Sobre língua não se legisla. Quando isso ocorre, é
sempre um ato de cima para baixo, ordens do topo da pirâmide para o povo na
areia escaldante, e ocorre com frequência num contexto de dominação e incompreensão
das diferenças que enriquecem nossa fala.
Um dos primeiros atos dessa natureza no Brasil foi
o do Marquês de Pombal, que baniu em 1758 a língua geral paulista, derivada do
tupi e que se falava em São Paulo, por exemplo, tornando a língua portuguesa obrigatória
na colônia. O nheengatu é a única das línguas crioulas que sobreviveu, sendo
falada ainda hoje no norte do país.
Não, este não é um texto de um Policarpo Quaresma,
que gostaria de ver o tupi como língua oficial do país. Eu certamente teria
gostado muito de ter crescido bilíngue, falando o português e o tupi ou uma das
línguas crioulas derivadas deste, como a língua geral paulista ou o nheengatu.
Como teria sido nossa relação com a terra e com os povos nativos que nos
formaram se isso tivesse ocorrido? Talvez a pergunta de Oswald de Andrade siga
válida: “Tupy or not tupy, that is the question.”
Estou certo de que muitos gostam de pensar que não
há outros escritores que amem a língua portuguesa tanto quanto ele ou ela. Eu
tenho um prazer imenso em falá-la. Quando faço leituras públicas dos meus
textos, algumas pessoas já disseram que elas estranham a forma como leio, por
articular demais as sílabas. Eu articulo mesmo. Gosto de cada som, de ir do
alto ao baixo na língua – tanto neste conjunto de signos como com o órgão que
escondo entre os dentes.
Na linda canção Língua, Caetano Veloso o diz
bem: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / Gosto
de ser e de estar / E quero me dedicar a criar confusões de prosódia / E uma
profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões /
Gosto do Pessoa na pessoa / Da rosa no Rosa / E sei que a poesia está para a
prosa / Assim como o amor está para a amizade / E quem há de negar que esta lhe
é superior? / E deixe os Portugais morrerem à míngua /’Minha pátria é minha
língua’ / Fala, Mangueira! Fala!”
A relação do brasileiro com a língua portuguesa me
parece bastante única dentro do contexto pós-colonial. Não sei como é isso em
países como Angola e Moçambique, onde as guerras de independência ainda estão
frescas na memória. Queria ouvir todos. Sim. Fala, Mangueira. Fala, Mooca. Mas
falem conosco também, Alfama e Baixa. Falem conosco, Kikolo e Panguila.
Precisamos de todos.
Meu primeiro contato com acordos ortográficos foi
em volumes antigos de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles
– aquelas primeiras edições da Nova Aguilar de suas obras completas, em capa
dura e papel-bíblia. Aquelas “flôres” e “fôrmas”, “seqüências” e “ungüentos”,
assim mesmo, com tils e tremas. Lembro-me de, ainda criança, ter perguntado a
um adulto, já não me lembro quem, por que não tínhamos K, Y e W na língua
portuguesa. A explicação me pareceu bastante plausível: porque o C, o I e o V
já cumpriam as mesmas funções fonográficas e não tínhamos um som específico
para aquelas.
Precisamos realmente de outro acordo ortográfico, e
os motivos para esse novo acordo são plausíveis? Algum leitor brasileiro algum
dia teve problemas ao ler edições portuguesas de poetas como Fernando Pessoa e
Mário Cesariny? E o que fazer com os poemas de Mário de Andrade, por exemplo?
Pessoalmente, não acho que o acordo seja uma tragédia. Mas temo os problemas
maiores neste campo mesmo da escrita, onde ainda há tanto racismo, ignorância e
mentalidade colonialista. Parece-me simplesmente um desperdício de energia e
recursos, uma demonstração de incompreensão da língua justamente por aqueles
que querem legislar sobre ela.
Uma ortografia unificada não vai mudar nossas
diferenças sintáticas e nossos vocabulários cheios de marcadores históricos –
lembretes de quanto sangue e quanto sofrimento esta língua linda custou às
colônias. E ainda assim a amamos. E quanto. Cheguei a ler que acreditam que
este acordo unificando as línguas trará mais prestígio internacional a ela. Quanta
baboseira, vendo a maneira como tratam a literatura em nossos países. Prestígio
à língua portuguesa traz a reputação internacional de Fernando Pessoa. A febre
que os livros de Clarice Lispector estão causando no mundo anglófono – mundo
que, por sinal, não tem um acordo ortográfico unificando-o.
A briga sobre o mais recente acordo ortográfico vai
continuar e, infelizmente, em muitos casos pelos piores motivos. Li textos a
respeito que apenas pingavam de racismo velado e aquela velharia da mentalidade
colonialista. Não precisamos de puristas, e vejo purismo por vezes tanto nos
que defendem e atacam o novo acordo. Portugueses vão continuar não lendo
brasileiros, brasileiros vão continuar não lendo moçambicanos, e assim por
diante. Acreditar que um acordo ortográfico vá mudar isso ou que seja realmente
um primeiro passo necessário mostra que continuamos sendo regidos por
bacharéis.
Porque acordo ortográfico nenhum vai ajudar um
leitor brasileiro a entender o que um poeta angolano quer dizer com “mulemba”
ou um leitor português a entender o que um poeta brasileiro quer dizer com
“macambira”, assim como eu próprio levei tempo para descobrir o que eram
“osgas” nos poemas de Adília Lopes, e, ao descobrir, enriqueci minha lusofonia.
Entretanto, é necessário ter acesso à língua comum, mas diferente.
Estes dias peguei-me perguntando o que Elomar
Figueira Mello quer dizer com “futuca a tuia” em uma de suas canções. E que
tristeza é abrir uma edição recente de Mensagem, de Fernando Pessoa, e
ver que corrigiram sua ortografia propositalmente antiga! Enlouqueceram,
bacharéis? Que baixaria. Vão querer me corrigir ao pedir “a bença” para
a minha vó morta? Precisamos deixar de ignorãça, meu povo. Cadê, quedê
ou onde é o encontro anual entre escritores lusófonos? Um ano em Lisboa, outro
em Luanda, depois em Maputo, e no Rio de Janeiro, passando por Bissau e aquela
capital de lindo nome, Praia.
Os esforços não seriam muito mais válidos para nos
unir? Por que a tal comunidade não começa a publicar e distribuir gratuitamente
volumes de poetas de cada país lusófono em cada um dos países lusófonos? Ou é
tudo apenas para ajudar editoras a vender seus xaropes? Ora, sem saber o que
exatamente quero dizer, mas confiando no poeta, conclamo os falantes da língua
portuguesa: “futuca a tuia, pega o catadô, vâmu plantá feijão no pó. ”
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