Autoria: Luisa
Cabral.
Fonte: Esquerda.net. Data: 26/02/2016.
URL:
www.esquerda.net/opiniao/transformar-biblioteca-numa-aventura/41424
Umberto Eco faleceu
a 19 deste mês, como bibliotecária gostava de lembrar o que lhe fico a dever.
Um lema carregado de
prazer, de persistência e luta. Este lema sintetiza tudo quanto aprendi, sei e
pratiquei entre as quatro paredes da biblioteca. Valeu sempre mais do que todos
os manuais juntos que fui obrigada a ler e a escrutinar. As mais das vezes
intragáveis, longe das necessidades dos leitores, da sua paciência e urgência
para se embrenharem nas artimanhas que cada biblioteca pode representar.
Umberto Eco faleceu a 19 deste mês; como bibliotecária gostava de lembrar o que
lhe fico a dever.
Transformar
a biblioteca numa aventura. Este lema sintetiza tudo quanto aprendi, sei e
pratiquei entre as quatro paredes da biblioteca. Valeu sempre mais do que todos
os manuais juntos que fui obrigada a ler e a escrutinar
No Verão de 85 li
sofregamente O nome da
rosa. Para lá de todas as razões que tornaram famoso o romance,
a mim marcou-me pelas alusões finas ainda que diretas ao espaço da biblioteca,
ao valor da mensagem escrita, à imperiosidade da leitura. As referências claras
à organização que se quer indispensável numa biblioteca: “ao longo das paredes…
enormes armários, carregados de livros, dispostos com regularidade. Os armários
tinham uma etiqueta numerada, assim como cada uma das prateleiras: claramente,
os mesmos números que tínhamos visto no catálogo”; ou à riqueza interminável
que uma biblioteca guarda: “…a biblioteca era ao mesmo tempo a Jerusalém
celeste e um mundo subterrâneo nos confins entre a terra incógnita e os
infernos”; ou à responsabilidade social da biblioteca: “…a biblioteca não podia
ser ameaçada por nenhuma força terrena, era portanto uma coisa viva…mas, se era
viva, porque não devia abrir-se ao risco do conhecimento?”. Três questões
pertinentes para qualquer técnico de biblioteca e, por maioria de razão, para o
leitor.
Aspetos fundamentais
num apelo às bibliotecas quando estas se tornam um cenário privilegiado para o
exercício de normas, regras, soluções tecnológicas, quantificações várias
esquecendo os livros, a complementaridade entre eles, a cumplicidade temporal.
De
Bibliotheca - Este livrinho, precioso, um manancial de
sugestões e análise crítica, constitui um marco para a compreensão do lugar das
bibliotecas, da importância dos livros e uma boa decisão seria considerá-lo nos
currículos académicos, objeto de leitura obrigatória e discussão
Mas o texto mais
marcante sobre o lugar de prazer e construção que as bibliotecas corporizam é,
inquestionavelmente, o De
Bibliotheca (Paris: L’ Échoppe, 1986 ou Lisboa: Difel, 1987),
transcrevendo conferência proferida em 1981. Trata-se de um livro pequenino,
menos que bolso, mordaz e acutilante. Abunda em passagens conseguidas sobre o
que as bibliotecas são, ou deviam ser, colocando o leitor no centro das suas (nossas)
preocupações, observações feitas por quem viveu entre os livros, os usou,
refletiu ou escreveu. Basta uma citação para se perceber: “…um dos
mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se
vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece…ora, a função da
biblioteca […] é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava”.
Esta passagem é das minhas favoritas porque nela se reconhece uma dinâmica e
uma dialética que continuam a ter ferozes opositores. Destaco ainda o “modelo
negativo” arquitetado e proposto para uma biblioteca. Uma obra-prima de
dezanove princípios a desafiar os que insistem em sobrevalorizar as normas e a
organização em detrimento das pessoas, do conhecimento, da cultura e do saber.
Este livrinho, precioso, um manancial de sugestões e análise crítica, constitui
um marco para a compreensão do lugar das bibliotecas, da importância dos livros
e uma boa decisão seria considerá-lo nos currículos académicos, objeto de
leitura obrigatória e discussão. Fui buscar ao De Bibliotheca o lema puxado para título
o qual me inspirou num projeto de âmbito nacional, a maior aventura
profissional em que me envolvi. Nunca será demais dar o De Bibliotheca a ler.
Dá que pensar, até ao incómodo, mas as bibliotecas agradecem.
Luisa Cabral
Bibliotecária reformada da função pública. Candidata do
Bloco de Esquerda nas eleições legislativas de 2015, pelo círculo eleitoral de
Lisboa.
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