Autoria: Susy Murakami.
Fonte: Gazeta do Povo (Curitiba).
Data: 11/10/2016.
O ex-presidente do
Tribunal de Justiça do Paraná Miguel Kfouri Neto já chegou a trazer da França
33 quilos de livros – pagos em várias prestações – para completar sua coleção
particular.
Paulo Venturelli,
professor aposentado da Universidade Federal do Paraná, comprou um apartamento
que é habitado por 15 mil seres fantástico: seus livros. Ele faz questão de separá-los
por país de origem.
O Caderno G visitou
estes templos construídos por meio de décadas de investimento e dedicação. Veja
a seguir o que guardam em suas estantes e o que motiva os donos de grandes
bibliotecas particulares de Curitiba a manter milhares de obras em suas casas.
Paulo Venturelli – Um apartamento só para os livros
“Quando eu era
adolescente, eu tinha um professor que dizia: para ser inteligente, é preciso
ler um livro por semana”. O conselho dado ao professor aposentado da
Universidade Federal do Paraná Paulo Venturelli foi mais do que seguido à
risca. Foi necessário para lá de um livro por semana para encher as estantes do
apartamento comprado exclusivamente para abrigar sua biblioteca. Hoje já são 15
mil livros de um acervo que continua crescendo.
O primeiro exemplar
ele guarda até hoje: Boitempo, de Carlos Drumond de Andrade, adquirido em 1968
com o dinheiro do almoço do dia. “Almoçar eu almoçaria no dia seguinte. Já o
livro poderia não estar mais lá”, recorda.
Assim como essa obra
de grande valor pessoal, qualquer outra, entre as milhares, pode ser encontrada
“no escuro” pelo professor. Ele sabe onde está cada um dos livros, que ficam
separados por país: Brasil, Inglaterra, França, Índia, Japão, Turquia e tantos
outros. Os títulos, além de literatura, abordam história, política, futebol e
tantos outros também. Tem livros que já leu dez, quinze vezes. “Cada livro que
leio é uma vida nova, um universo novo. Tenho uma vida que se renova a cada dia
sem o peso da mesmice”.
Entre temas atuais e
de seu interesse, alguns são apenas resgate das lembranças da adolescência. Da
trilogia da autora francesa Raoul de Navery, que havia lido quando estava no
colégio interno, faltava o primeiro volume “Sepultada Viva” que finalmente
conseguiu em um sebo. Veio com uma dedicatória datada de 1952 de uma madre para
uma aluna. Esse é um dos que ainda hesita em reler. Receia que o encanto
produzido pela leitura na adolescência não se repita.
Venturelli também é
doutor em literatura, membro da Academia Paranaense de Letras e tem cerca de 20
obras publicadas.
Miguel Kfouri Neto – 33 quilos de livros
Grandes referências
do direito nacional e internacional podem ser encontradas na biblioteca do
desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná Miguel Kfouri
Neto. O acervo foi sendo montado ao longo de mais de 30 anos com clássicos,
lançamentos, obras esgotadas, periódicos e tudo o que poderia ser relevante
para o estudo do direito. A biblioteca chegou a ter 9 mil exemplares, contando
as revistas de jurisprudência, mas hoje tem “apenas” cerca de 3 mil, incluindo
outros temas.
Leitor voraz, Kfouri
Neto tem formação em letras e foi professor de português. Mas o vício em
comprar livros começou depois de ser aprovado no concurso para magistratura, em
1984. Entre as principais aquisições estavam obras usadas como referência em
acórdãos dos tribunais ou citações em petições. “Não sossegava enquanto não
adquiria tal livro, se já não o tivesse, para conferir a transcrição”, revela.
Também ia
colecionando exemplares para utilizar nas aulas de direito processual civil que
lecionava, para o mestrado, doutorado e para os três livros que publicou
relacionado ao direito médico e da saúde. Esse tema ocupa em torno de 20% do
espaço da biblioteca.
A certa altura,
quando ainda morava no interior, sua esposa proibiu a entrada de vendedores de
livros em sua casa. “Eu tinha que ver os livros na esquina, longe dos olhos
dela”, lembra.
Quando veio a
Curitiba teve que ir se desfazendo de uns tantos “com dor no coração”, pois a
situação ficara insustentável. Hoje eles ainda ocupam mais de um cômodo da
casa, além da biblioteca, contrariando a advertência contida no primeiro livro
que leu na magistratura: “De regra, nossas casas e apartamentos já não tem
lugar para bibliotecas, além disso, a grande biblioteca é um luxo caro e
desnecessário” – A Voz da Toga, Eliézer Rosa.
Biblioteca Roberto Campos – Homenagens de Bill Clinton e
da Rainha da Inglaterra
Entrar na sala
Roberto Campos, da biblioteca da Universidade Positivo, é como invadir uma
parte do universo particular de um dos maiores economistas que o Brasil já
teve. Roberto Campos morreu em 2001 e deixou um acervo de mais de 8 mil obras
com anotações e dedicatórias que podem ser consultadas pelo público.
Sua vasta coleção de
livros foi disputada por várias instituições, sendo, ao final, adquirida pelo
Grupo Positivo que não revela o valor pago. O acervo está aberto para consulta
pela comunidade em geral, mas não pode ser emprestado.
Admirado pela
inteligência e pelo conhecimento na área econômica, Campos foi ministro,
embaixador e escritor. Em sua gestão nasceram o Banco Central, o FGTS, a
caderneta de poupança. Implementou reformas, elaborou programas de governo, foi
também senador, deputado e deixou uma série de outros legados.
A biblioteca expõe
cerca de 30 objetos que pertenceram a Campos
Observando as
prateleiras, descobrirá seu interesse pelos mais variados assuntos e grande
inclinação pelas biografias. A quantidade de dicionários também impressiona. Um
deles, o “Novo dicionário da língua portuguesa”, de Jânio Quadros, conserva a
dedicatória do autor: “Ao embaixador Roberto Campos, mesmo sabendo que a obra
lhe é supérflua”.
As obras de autoria
de Campos também estão disponíveis no acervo. O economista Gustavo Franco foi
um dos frequentadores assíduos do local, que serviu de fonte de pesquisa para o
seu livro “A leis secretas da economia: revisitando Roberto Campos e as leis do
Kafka”.
René Dotti – Bibliotecária para cuidar do acervo
Grande admirador das
bibliotecas bem formadas, Renê Dotti, um dos mais respeitados juristas do
Brasil mantém em casa seu próprio acervo de obras seletas. Livros não se compra
por metro, sugere ele.
Não à toa, tem uma
coleção de obras raras: do Código do Processo Criminal de Primeira Instância do
Império do Brasil, de 1882, a uma edição italiana da ópera O Guarany, de Carlos
Gomes, dedicada A sua Maestá Dom Pedro IIº, Imperatore del Brasile. Da obra
poética Paraíso Perdido, de John Milton, possui quatro versões, a mais antiga é
de 1789.
A bibliotecária,
Mônica Catani, contratada para cuidar do acervo, registrou até o momento 5600
obras, mas estima ter mais de 15 mil. O acervo valioso ganhou seus primeiros
itens nos anos 50. Em princípio, eram relacionados ao tema de interesse do
então estudante de direito. “Mas sempre achei que atividade de advogado era
complementada de literatura, de arte…”, ressalta Dotti, que também é membro da Academia
Paraense de Letras.
Muitos dos
exemplares foram adquiridos em feiras de antiguidade ou em sebos de vários
cantos. Mas não é apenas às coleções antigas que Dotti dispensa atenção. Está
sempre alerta aos lançamentos ou ao que “está na ordem do dia”. Uma das
aquisições mais recentes é reedição de “Ópio dos Intelectuais”, de Raymond
Aron, que ganhou nova tradução em 2016.
O espaço faz jus ao
valor das obras, sendo elegantemente decorado com peças de artes e objetos
antigos. Ao fundo, um minipalco revela que o encanto pelo teatro segue intacto.
Antes do direito, Dotti fez parte de um grupo que tinha Ary Fontoura entre seus
integrantes.
Todo esse arsenal de
conhecimento não fica restrito às quatro paredes da biblioteca. As
penitenciárias que visita é um dos destinos das doações que costuma fazer.
Marcelo Almeida –
Indicações de Michel Temer
Formado em
engenharia civil, Marcelo Almeida, ex-vereador e ex-deputado federal, indica
que se tivesse que exercer a profissão seria a de engenheiro dos livros. “O curso
de engenharia foi um erro”, aponta. “Eu deveria ter feito jornalismo, letras…”.
O entusiasmo pela leitura logo entrega sua afinidade com a área de Humanas.
A relação de amor
com os livros tornou-se forte na faculdade e teve como grande cupido o respeitado
escritor curitibano Jamil Snege (1939-2003) de quem foi amigo pessoal. “Ele
colocou uma frase que mudou minha vida: ‘você vai ser o que você ler”. Desde
então, mergulhou na leitura, tendo preferência pelos romances.
Mas em sua
biblioteca particular, que deve passar dos 1500 livros, tem também muito de
política, urbanismo, história, autoajuda. “Se eu leio autoajuda? Eu leio
qualquer coisa. Tirei uma coisa muito boa daqui”, diz, antes de recitar um
trecho de “Como Chegar ao Sim”, de William Ury.
Fora os livros
pessoais, compra centenas de um mesmo exemplar para distribuir aos integrantes
do “Conversa Entre Amigos”, clube que criou há mais de dez anos para reunir
leitores e autores e promover discussão sobre as obras. A reunião é feita em
torno de cinco vezes ao ano e já teve nomes internacionais e locais, como Mia
Couto, J.M. Coetzee, Laurentino Gomes e Domingos Pellegrini.
De épocas de
efervescência na política prefere tirar proveito apenas dos assuntos e temas
discutidos, ir fundo nas leituras e aprender sobre fundamentos da democracia e
governos.
Paulo José da Costa – Discoteca judaica
O gosto pela leitura
e o dom para o comércio manifestaram-se desde cedo na vida de Paulo José da
Costa. Na década de 50, com 6, 7 anos, já lia as célebres quadrinizações e
gibis da época e participava dos eventos onde se faziam trocas de exemplares.
“Eu ia com 50 gibis e voltava com 54 e a minha pilha ia sempre aumentando”,
relembra.
A pilha cresceu e
variou tanto que acabou virando o tradicional sebo Fígaro de Curitiba com 20
mil livros em estoque. O acervo particular tem “mais ou menos 3 ou 4 mil
obras”, calcula Costa.
Assim como no
estabelecimento, a coleção de casa está mais para “culturoteca”, pois além dos
livros, é composta por discos, DVDs e fotografias. Começou com livros sobre
música e hoje tem, basicamente, obras de história, música e arte e nada de
literatura. “Perdi o gosto pela ficção. Gosto de coisas que aconteceram”,
explica. Também por causa do volume prefere limitar-se ao que realmente tem
interesse.
Por isso, tem sempre
o trabalho de fazer um bom garimpo em bibliotecas privadas inteiras que lhe são
oferecidas para compra. De cada cem livros que vão para o sebo, dois ou três
ele leva para casa. Nessa de examinar acervos, se depara com fotografias antigas
que para ele são valiosas narrativas revelando todo o contexto de uma época ou
lugar. Os retratos acabam sendo incorporados ao material adquirido e já
superaram em muito o número de livros: cerca de 30 mil.
Muitas obras são
raras e algumas de valor inestimável, como um disco de Heitor Villa Lobos com
assinatura e um “aprovo” escritos pelo ele. É um disco enviado pela gravadora
para avaliação e aprovação do maestro e compositor na década de 1940.
Nenhum comentário:
Postar um comentário