Autoria: Gustavo Rubim.
Fonte: Público (Portugal). Data: 1/11/2016.
Num capítulo da História da Leitura no Mundo
Ocidental — coordenada por Guglielmo Cavallo e Roger Chartier
(editada em 1997) — Anthony Grafton explica como Maquiavel concebia e praticava
dois tipos de leitura bem diferenciados. Uma é leitura de entretenimento,
destinada a alimentar a imaginação (com predomínio dos poetas, clássicos ou
modernos, maiores ou menores); outra é uma leitura prática, de que se extraem
lições para as matérias mais graves da esfera política, em diálogo permanente
com filósofos, mas sobretudo com historiadores como Plutarco, Tito Lívio ou
Tácito.
Este estilo de organização humanista da
relação com a biblioteca, governada ora pelo prazer ora pela utilidade, poderá
parecer distante da que propõe Alberto Manguel (autor, também, de Uma História
da Leitura, traduzida em 1998 na Editorial Presença e bem diversa
da de Chartier e Cavallo), sobretudo neste livro A Biblioteca à Noite,
mas não anda tão longe quanto isso. Basta imaginar Manguel como o humanista que
decidiu misturar os dois critérios, de maneira a não se perceber qual deles
está em vigor, mas sem abdicar de nenhum deles nem dos fundamentos da sua
distinção. E, sobre isso, acrescentar a diferença (no fundo, meramente pessoal)
entre um humanista com projectos políticos bem determinados e outro que
transferiu todas as ambições para o próprio terreno dos livros e da suprema
competência livresca.
Pode estranhar-se esta ideia, sobretudo pela
parte que diz respeito ao uso instrutivo e prático dos livros. Todavia, o
próprio Manguel é claríssimo nesse ponto. Logo no início da mencionada Uma História
da Leitura, há uma página que decerto nunca sai da cabeça dos seus
bons leitores e um parágrafo que, para a resumir, conclui nestes termos: “Todos
nós nos lemos a nós mesmos e ao mundo que nos rodeia para poder vislumbrar o
que somos e onde estamos. Lemos para entender, ou para começar a entender. Não
temos outro remédio senão ler. Ler, quase tanto como respirar, é a nossa função
essencial.” Sublinhar esta passagem serve para tirar da cabeça a ilusão de que
Manguel possa ser alguma espécie de discípulo do Roland Barthes que escreveu O Prazer do
Texto ou mesmo um espírito claramente afim do de Jorge Luis Borges.
Esses não são, em rigor, leitores nem escritores humanistas: sem deixarem de
tirar toda a espécie de proveito da vasta biblioteca que dominavam,
faltava-lhes esta visão a que poderíamos chamar bibliocrática: a visão em que a
leitura é promovida a definição antropológica.
A diferença em relação a Barthes é mais
nítida. Esta Biblioteca
à Noite tem quase nada de perverso. À noite era exactamente a hora
a que Maquiavel se recolhia no escritório para dialogar, devidamente vestido
como quem visita uma corte, com “os homens antigos” a quem perguntava pelo
sentido dos feitos que tinham cometido. E, obtendo as respostas que procurava,
era esse, agora que estava afastado do poder político, o auge do seu quotidiano.
No final do capítulo A Biblioteca como Oficina, verdadeiro coração deste
livro, Alberto Manguel cita uma parte da carta em que Maquiavel declara que
durante as quatro horas nocturnas de leitura se esquece do mundo e de “todos os
dissabores” por força desta razão simples: “passo para o mundo deles (os
antigos)”. Abrindo o capítulo seguinte, declara que, ao jeito de Maquiavel, é à
noite que frequentemente se senta “na companhia” dos seus livros (decerto sem
se vestir para a ocasião, real ou figuradamente). As suas estantes também não
lhe fogem na escuridão. Mesmo quando (e não é a primeira vez: veja-se a sua História da
Curiosidade traduzida em 2015) descreve a dificuldade de as
arrumar, acabam perfilando os livros de tal modo que eles nunca deixam de
responder quando solicitados. É essa a maior diferença perante Barthes: aqui há
sempre livros, obras, autores, nunca há essa matéria esquiva e pouco
domesticável que era, para o ensaísta das Mitologias e de S/Z, o texto ou a escrita.
Também não encontramos, nesta noite clara,
aquela espécie de biblioteca alucinada em que Borges era perito. A organização
dos capítulos di-lo bem: é sempre A Biblioteca como X, desde A Biblioteca como Mito
até A
Biblioteca como Lar. E a própria biblioteca, cosmopolita e nunca
esgotada, vai fornecendo as chaves para a autodecifração e entendimento dos
seus vários “comos”. Mas a tranquilidade de proprietário de livros, com que
Manguel parece sempre tomado duma confortável euforia bibliófila, não tem de se
lhe aplicar como modo de leitura obrigatório. Basta considerar, em alternativa,
a maior ausência deste livro, que não é a de algum livro ou texto que fosse
fundamental mencionar: é a do gesto sem o qual ele não poderia ter sido
escrito: o gesto de sublinhar. Nem no capítulo A Biblioteca como Oficina
se fala de sublinhados com o sentido de uma operação importante. Essa
ressurreição do escritório ou do estúdio humanista é, no entanto, a que mais
merece ser sublinhada, para que uma leitura atravesse estas páginas e
desenterre todos os seus fantasmas. O sublinhado pode começar numa frase da
página 158: “Se a minha biblioteca é uma crónica da minha vida, o meu
escritório guarda a minha identidade.”
Esta frase diria outra coisa se, em vez de
identidade, falasse de estilo. Assim, é uma afirmação pré-freudiana, confiante
na crença de que a verdade do eu está no lugar exacto onde metodicamente se
concentra e isola (um espaço, uma antologia de objectos, certa arrumação e
ordem), não no denso e partilhado caos das suas dispersões (família, erotismo, sonhos,
etc.). Este ego leitor é, enfim, um insólito fantasma bibliográfico do sujeito
cartesiano (leio e anoto os meus livros, logo existo) temperado por uma versão
hedonista da ética, talvez mais protestante do que católica, do trabalho
intelectual. Isso não faz concluir que a escrita de Manguel seja
desinteressante ou inócua. Pelo contrário, converte-a numa alegoria bastante
sugestiva do estado actual da literatura, da filologia e da erudição
consideradas enquanto formas de poder. Um poder frágil, obrigado a fazer girar
os seus próprios símbolos (a biblioteca será dos principais) e a equilibrar-se
em cima deles para não se esfumar definitivamente no meio da floresta de sinais
informáticos cujos arquivistas são empresas que contabilizam o anacrónico
humanista como um utilizador entre milhões de outros.
A ironia é que a informática fornece à
biblioteca uma forma bem concreta de ela não desabar tão cedo: na leitura de
livros anotados, modelo clássico dos de Alberto Manguel, acelera
prodigiosamente a procura das raridades literárias reveladas nas notas. Prova
definitiva de que um bom livro não é o que nos promete conversas com o autor,
mas aquele que nos encaminha para um livro ainda melhor. Parece desumano, mas é
assim.
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