Autor:
Demétrio Rocha Pereira.
Fonte:
Zero Hora (Porto Alegre, RS). Data:
17/06/2014.
Machado no papel e Machado no tablet não são o
mesmo Machado. O de tinta se imprime na lembrança; o de pixel passa ao largo da
memória e, entre a publicidade, as abas e os links, some como fantasma entre
fantasmas.
Não que ler nas telas eletrônicas seja sempre uma
tragédia. É que cresce a turma de cientistas avisando que o cérebro prefere
guardar texto folheado, tocado, cheirado. A tela que imita papel e tinta,
vantagem de leitores de e-books como o Kindle, já evoluiu a ponto de ombrear o
material impresso em testes de velocidade e precisão de leitura, mas ainda come
poeira nos quesitos compreensão e memória.
Em 2002, pesquisadores das universidades
britânicas de Plymouth e Bristol sugeriam que lembramos melhor daquilo que
lemos em papel. Dois anos depois, psicólogos das universidades suecas de
Karlstad e Gothenburg emendaram: monitores eletrônicos são lanternas de
estresse, e rolar páginas virtuais distrai mais do que virar páginas reais.
Ainda em 2004, um estudo da universidade francesa de Bretagne-Sud apontava que
o e-book "dificulta a recordação de informação assimilada", enquanto
o papel "tende a facilitá-la". Haveria uma "relação
crítica" entre o manejo do objeto e o processamento mental do texto.
Essas observações foram decerto antecipadas pela
sabedoria popular, sendo pouca a gente que, em literatura, favorece o
computador. O problema é que, como o cérebro se molda às tarefas que mais
executa, a nossa capacidade de sacar passagens longas e complexas pode estar
sofrendo com o alto consumo de "leitura fastfood" nos badulaques
digitais.
A neurocientista e escritora britânica Susan
Greenfield cunhou o termo "mudanças mentais", segundo ela tão
importante quanto o correlato climático, para descrever a transformação do
cérebro treinado para a internet. Essas mudanças, no que afetam a nossa relação
com a palavra, vêm sendo rastreadas por pesquisadores como Maryanne Wolf,
professora da universidade americana de Tufts e autora de Proust e a Lula:
História e Ciência do Cérebro Leitor.
Em seu trabalho "arqueoneurológico",
Wolf diz que não há gene ou parte do cérebro que se devotem especificamente ao
ato de ler. Em vez disso, a atividade teria sido lapidada aos poucos na
estrutura do órgão, em um processo de aprendizagem que, rascunhado nas argilas
dos sumérios e nas paredes dos egípcios, estaria agora garranchado pela
internet. Não sem alguma ironia, o livro de Wolf achou sucesso, e departamentos
de Inglês passaram a procurá-la, apavorados com a dificuldade de alunos em
compreender obras clássicas.
Tanto Wolf quanto Nicholas Carr, autor do best-seller
Geração Superficial, consideram que os debates atuais ratificam a filosofia de
Marshall McLuhan, famoso por declamar, ainda nos anos 1960, que "o meio é
a mensagem". A própria tecnologia, versa McLuhan, é portadora de
ideologia, e Carr argumenta que na internet passeia uma ética industrial:
rápida, eficiente, otimizadora da produção e do consumo, adversária da
contemplação.
- Os fornecedores de conteúdo sabem disso e
produzem de acordo. Acrescente a isso a entrega de material digital em uma
plataforma multitarefas sempre em atualização, e o resultado é uma série de
ações breves de reação a mensagens e textos curtos que quebram a progressão
normal da leitura em profundidade - afirma Andrew Dillon, da Universidade do
Texas.
Separando 72 estudantes do primário em dois
grupos, Anne Mangen, da universidade norueguesa de Stavanger, pôde observar que
narrativas lineares ganhavam leituras mais pobres quando digitalizadas em PDF.
Entre as possíveis causas estaria a "fisicalidade" do papel, contra a
excitação meramente visual dos monitores.
Mangen diz que é cedo para restringir as
diferenças a aspectos táteis, já que a experiência com a palavra depende também
de "subdimensões" como a diagramação da página, o tipo de texto, o
propósito e o local de leitura. Ainda assim, ao entrevistar leitores, ela ouviu
muito aplauso ao manuseio do objeto, como o "prazer de ter um livro em
mãos" e a "possibilidade de fazer anotações na margem".
- Além disso, já está relativamente aceito que
não somos muito bons em executar várias tarefas ao mesmo tempo. Isso vem a um
custo não apenas cognitivo, como a perda da habilidade de manter o foco por
longos períodos, mas também em diversos outros níveis - afirma a professora,
mencionando a preocupação da comunidade científica com a formação de crianças
mais acostumadas a telas virtuais do que ao toque físico.
NOVOS CAMINHOS
Depois de conduzir estudo sobre a aprendizagem
com audiobooks, a professora Vera Wannmacher Pereira, da Faculdade de Letras da
PUCRS, agora fará parte de um grupo que vai comparar o processamento cognitivo
de textos eletrônicos em relação aos impressos. A pesquisadora ressalta que o
processamento da leitura se modifica não apenas em função do suporte,
dependendo ainda do objetivo do leitor, do seu conhecimento prévio e do tipo de
texto. No caso da palavra falada, por exemplo, o "leitor" adota artimanhas
diferentes.
- Mesmo com o livro virtual, é possível rolar a
barra, pular, ir adiante e voltar. O audiobook é muito mais sutil. O leitor
sabe que não haverá repetição, então dá preferência a uma estratégia de
compreensão detalhada. Como o processamento é diferente, e como a leitura é
mais minuciosa, observamos resultados melhores de compreensão e de aprendizagem
no audiobook - diz Vera.
A professora afasta a tese de que os jovens hoje
se desarranjam diante de obras clássicas, apontando que "a socialização do
conhecimento é complexa, demorada e mexe com convicções".
- Hoje temos um mundo do movimento, da cor. Isso
modifica tudo, e não significa que algo vá tombar. O que vai ocorrer,
provavelmente, é uma acomodação de todos os suportes. O e-mail trouxe uma
transformação social muito grande, e não adianta se apavorar porque antes se
escrevia uma carta com zelo e, hoje, a mensagem vem abreviada e rápida. Temos
que saber nos ajustar, construir novos caminhos para este mundo, e não para o
mundo que já foi - sustenta.
Vera também alerta que o maior acesso à educação
apresenta desafios para a avaliação da aprendizagem:
- Poucos iam à escola na minha geração, e é claro
que esse grupo, tão selecionado em testes para entrar no primeiro ano, no
ginásio, no Ensino Médio, acabaria lendo e escrevendo bem. Hoje temos quase
todas as crianças nas escolas, com condições, buscas, situações econômicas
muito diferentes. Vivemos no mundo da heterogeneidade. Antes, os processos
seletivos davam uma aparência de homogeneidade - completa.
A REDE NÃO É RASA
Decano da Escola de Informação da Universidade do
Texas, Andrew Dillon repara que os avanços tecnológicos disparam muitos outros
alertas vermelhos, para além da nossa relação com a palavra escrita. Grita-se,
por exemplo, que os serviços de nuvem e busca vão detonar a memória humana como
se fosse aplicativo dispensável para a espécie. Dillon concorda que devemos
segurar firme a habilidade de apreciar os benefícios de textos longos, mas diz
que não vale gastar muito tempo pensando em um "iminente colapso da
cultura":
- Olha, a tecnologia vai sempre nos arruinar,
então por que a web seria diferente?
Porque, para trincheira mais otimista, a internet
foge do dilema do copo meio cheio ou meio vazio. A manobra é surfar na onda
braba da rede e desaguar, vez que outra, em água parada.
- O autor de Geração Superficial diz que não
pensamos mais. Mas eu não preciso mais lembrar do teu telefone, uso a cabeça
para outras coisas. Isso passa pelo estímulo ao aprendizado. A gurizada chega à
sala de aula muito estimulada pela internet, a TV, o rádio. É questão de
ajustar o foco, conseguir provocar o aluno a entrar no ritmo de um livro.
Conseguir equilibrar é uma parte do problema - afirma André Pase, da Faculdade
de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS.
O professor lembra que tivemos de aprender a
lidar com o surgimento das redes sociais e, mais recentemente, do Twitter,
ferramentas que apresentaram um jeito novo de tratar a informação.
- Quando falamos em "o meio é a
mensagem", precisamos saber, no caso da internet, que falamos de um meio
superadaptável, com muitas lógicas e formas de comunicação. A natureza da
internet está em constante mutação, e isso bagunça um pouco a nossa percepção -
afirma Pase.
O pesquisador avalia que as telas eletrônicas
tendem a escantear o papel à condição de ingrediente de encadernações
especiais, com forte apelo gráfico, defendendo que a herança de lentidão da era
Gutenberg não precisa vir abaixo com a predominância dos monitores.
- Vivemos em um tempo muito fracionado. Hoje se
joga Angry Birds na sala de espera do consultório médico, mas antes havia
revistas, já estávamos bombardeados de informação. O que acontece agora é que
começamos a trazer isso para a rotina, e passa a ser necessário refletir sobre
o que lemos. Chega um momento em que o usuário das redes sociais já nem
acompanha o que faz, então é preciso dar uma freada, fazer o exercício de
buscar outros materiais - pondera.
Colega de Pase na Famecos, o professor Eduardo
Pellanda também vai na contramão do alarmismo, enxergando no acesso a um
espectro maior e mais diverso de informação o potencial de aperfeiçoar o
conhecimento.
- Olhando somente a leitura fragmentada,
aparentemente dá a impressão de que estamos nos aprofundando menos. Mas a minha
questão é entender o que fazíamos com este tempo antes? Me parece que não
consumíamos informação. É preciso aprofundar mais para saber se estamos
fragmentados ou presenciando uma nova forma de cognição - afirma Pellanda.
À apropriação de McLuhan que veste traje
apocalíptico na internet, Pellanda opõe que "não podemos pensar de maneira
determinista sobre o meio".
- Não se pode levar ao pé da letra a frase do
McLuhan. O meio influencia a mensagem, que entra em um ambiente de novas
apropriações. O contexto de um vídeo no YouTube é diferente deste mesmo vídeo
na TV. A internet não tem uma mensagem. Ela é múltipla, é um ambiente. Ela é e não
é meio de comunicação. A rede assume mais a forma da mensagem e do sistema de
comunicação, diferente dos meios originais nos quais McLuhan se espelhou para
cunhar a frase - diz o professor.
Porque insistimos em "pensar o papel na
tela", Pellanda avalia que os monitores ainda não desdobraram as melhores
interfaces para receber o texto "vivo e mutável" do ambiente
eletrônico. Mas a letra pixelada, ele avisa, veio para tomar conta.
- O papel tem a tangibilidade e a cultura milenar
por trás dele. Não podemos ignorar que isso é um valor simbólico importante.
Mas, do ponto de vista técnico, não há mais por que um texto estar no papel.
Salvo pela expressão artística, não há como pensar em todo o ciclo industrial
que significa a impressão nos dias de hoje - conclui.
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