Fonte: Tribuna
Hoje. Data: 19/07/2015.
Autoria: Anna Beatriz Anjos.
Fonte original: Revista
Semanal Forum.
Inaugurada no último dia 4, a Sala Temática Feminista da Biblioteca Cora
Coralina – a primeira da cidade de São Paulo – é um ambiente especial.
Contradiz a impessoalidade e a sisudez das paisagens da capital com suas amplas
janelas, que dão passagem à luz do sol. Os vidros que compõem as ventanas
abrigam versos de escritoras e poetisas, na leitura dos quais é possível se
perder. Se os demais espaços da Biblioteca são brancos, as paredes da sala são
coloridas e adornadas por retratos e pinturas produzidas por mulheres. Qualquer
um que adentre o local se sente convidado a passear por ele, examinar
atentamente seus detalhes, escolher algum dos mil títulos que oferece e se
acomodar para nas páginas mergulhar.
Localizada em Guaianazes, na zona leste da cidade, a biblioteca
feminista, como tem sido chamada, é fruto de uma parceria entre as secretarias
municipais da Cultura e de Políticas para as Mulheres. Seu acervo, construído a
partir de doações, ainda está em formação – quem quiser ceder algum exemplar,
basta levar até lá.
“A intenção é transformar o espaço em referência na área de gênero e
diversidade sexual. A ideia é que não seja apenas para leituras eventuais, mas
que se torne referência de pesquisa”, afirma Denise Dau, secretária Municipal
de Políticas para as Mulheres. “Nossa pretensão é que não seja só uma
biblioteca importante, referência da zona leste, mas que consigamos chegar em
um nível que uma estudante da USP que for fazer uma tese abrangendo as
políticas de gênero se anime e ache que aquele acervo pode ajudá-la na
construção de seu trabalho. ”
Uma das características mais interessantes da nova biblioteca é a região
onde está localizada. Já que grande parte dos equipamentos públicos de cultura
e lazer se concentram no centro da cidade, optou-se por infringir essa lógica e
levar a sala temática à periferia. Para a militante feminista Iris Leite,
moradora de São Mateus, isso faz toda a diferença. “A zona leste tem um
movimento forte de mulheres, mas a gente não tem espaço, na realidade, porque é
tudo muito centralizado. Uma das coisas mais incríveis [sobre a
biblioteca] é a questão da descentralização. Para participar das
coisas, sempre precisávamos ir para o centro, e com o espaço aqui fica muito
mais fácil”, destaca.
A efervescência de coletivos e movimentos sociais – sobretudo
relacionados à luta das mulheres – presente na região é uma das razões pelas
quais a Biblioteca Cora Coralina foi eleita para abrigar a sala temática. “Por
aqui há vários grupos culturais e equipamentos [públicos] que
trabalham com a questão das mulheres. Há muitas pessoas que militam em prol
dessa causa”, esclarece o bibliotecário Cléo Lima, coordenador da unidade.
Além disso, a zona leste da cidade ainda é uma área onde os direitos
femininos são intensamente desrespeitados. A avaliação é de Maria Aparecida de
Lima, fundadora e presidente da Associação de Mulheres da Zona Leste (AMZOL),
existente há 28 anos e que desde a década de 90 trabalha com casos de violência
doméstica e sexual. “A violência contra a mulher aqui ainda é muito forte, só
acho que hoje é mais divulgada”, analisa. “As mulheres buscam mais, denunciam
mais. Umas ajudam as outras. ”
Idealizada por e para mulheres, a biblioteca teve seu processo de estruturação
pensado também por elas, a muitas mãos. Denise explica que o cômodo onde ela
funciona estava bastante deteriorado e precisou passar por reformas antes de
receber os livros. Em seguida, a ambientação temática, orientada pela artista
plástica Biba Rigo, reuniu ativistas de movimentos diversos em oficinas
artísticas. Iris participou de duas, e em uma delas foram produzidas telas de
autorretrato agora penduradas nas paredes da sala. “Foi um processo
extremamente democrático, de partilha mesmo com as mulheres aqui da região.
Fomos bastante ouvidas”, conta. “As oficinas começaram dois meses antes [da
inauguração], eram encontros semanais, aos sábados, que duravam das 8h às
13h. E nesse espaço, além de fazermos as oficinas, a gente compartilhava a
vida, trocava histórias. ”
Importância
A primeira biblioteca feminista de São Paulo tem um papel evidente:
reunir, em um mesmo local, obras que versam sobre a figura da mulher, os
problemas e desigualdades que enfrenta no Brasil e no mundo, além de contar
suas histórias sob diferentes ângulos. Uma dessas perspectivas é a do movimento
de mulheres da zona leste. “A questão de ter essa biblioteca é resultado de uma
luta das mulheres que já vem de muitos anos”, considera Maria Aparecida de
Lima. “A minha preocupação é a juventude. E, por meio da biblioteca, ela vai
poder conhecer a história da mulherada da nossa região. De todo o Brasil, na
verdade. ”
Embora concebida em 2013, quando o assunto não estava em pauta, a
iniciativa vem em boa hora, no momento em que a Câmara Municipal Brasil afora
discutem os Planos Municipais de Educação (PNE), dos quais fundamentalistas
tentam abolir o conceito de “gênero”. “Um acervo de qualidade dá subsídios para
que as pessoas possam pesquisar, ter informações sobre o que são as políticas
de igualdade de gênero. Começa-se a conhecer mais profundamente a questão do
feminismo, e que ele significa a construção da igualdade entre homens e
mulheres, não obrigar que as pessoas tenham orientações sexuais induzidas ou
promover uma cultura que desvalorize o homem e só valorize a mulher”, argumenta
a secretária Denise Dau. “Ter um espaço que valorize o tema como um tema
científico, técnico, com dados, ajuda a mostrar como isso é importante para a
educação, mostra que isso tem que estar contemplado no currículo escolar. ”
(...)
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