Autoria: Carla
Hilário Quevedo.
Fonte: Jornal I (Portugal). Data: 24/11/2015.
URL: www.ionline.pt/481733
“A pior coisa que vos pode acontecer é tornarem-se
frequentadores de bibliotecas”, disse há muitos anos um professor excelente que
tive na licenciatura. Lembro-me de ouvir risos e de me rir com a provocação,
longe de imaginar que me tornaria precisamente numa “frequentadora de
bibliotecas” – em bom rigor, de uma biblioteca em particular.
Sou uma pessoa feliz quando me sento numa cadeira com o
forro meio rasgado – já se organizava um crowdfunding para restaurar as
cadeiras desta biblioteca – e aí dedico umas horas do meu dia a procurar livros
que me interessam, a ler e a escrever. Mas percebo as razões que levaram o
professor a desincentivar a frequência da biblioteca. Queria dizer aos alunos
de vinte e poucos anos que tinham de viver “fora dos livros” para os perceber,
para não reproduzirem palavras de outros, ideias de outros, sobretudo quando
não as compreendiam. Sei que a associação entre a passagem do tempo e a
capacidade de compreender o que lemos não está garantida e que nem sempre o
leitor mais velho é o melhor leitor. Mas há autores que ganham muito em serem
lidos mais tarde na vida, como Freud ou Nietzsche, isto só para mencionar dois
gigantes.
Mas voltemos à biblioteca. Das raríssimas vezes que a
frequentei durante a licenciatura ficou a memória de um silêncio sepulcral que
fazia daquele sítio um local sagrado com regras próprias, sendo uma delas o
silêncio tão procurado por alunos e professores. Lembro-me também de ser muito
pouco frequentada, mas talvez essa memória seja falsa. Afinal de contas, foram
muito poucas as vezes em que lá entrei durante aqueles anos. Talvez tenha
idealizado um sítio pouco atractivo, desconfortável, sem gente e em que não se
ouvia uma mosca. Para grande pena minha, esse sítio não existe hoje em dia. Ou
se existe, não é aquela biblioteca de que tanto gosto, apesar de os livros
estarem sempre a mudar de sítio, coisa que me enerva, e das cadeiras com o
forro rasgado.
“Chiu!” é a expressão mais repetida a partir das 11h da
manhã. À tarde, alunos de várias faculdades vão ali ter em bandos para
“estudar”. Vejo-os a olhar para os computadores uns dos outros, levantam-se,
comem, bebem e falam. Sim, falam imenso uns com os outros. Não sussurram
sequer: falam como se estivessem no café. “Chiu!”, ouve-se de repente. Alguma
alma desconcentrada e impaciente, penso. Porque uma coisa é estudar no café,
onde toda a gente fala e há um ruído permanente de pratos e copos. A diferença
entre o café e a biblioteca está na liberdade de expressão que não existe na
segunda. Não, não se pode falar. Sim, faz parte das regras estar calado na
biblioteca. O que aconteceu aos sinais de “silêncio, por favor”? Terei
imaginado que existiam?
Um dia perguntei a uma funcionária se não se importava de
chamar à atenção um grupinho que estava a fazer barulho. Disse-me que não valia
a pena. A partir daí passei a dedicar parte do meu tempo a mandar calar outras
pessoas. Tornei-me desagradável e nada amável. E a culpa não é minha! Faço aqui
um apelo desesperado: se quer ir para a biblioteca falar com os amigos, não vá
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