Autoria:
Cinthya Oliveira.
Fonte: Hoje em Dia. Data: 23/08/2016.
Um
dos mais prestigiados historiadores do mundo, o francês Roger Chartier nos
mostrou que é possível conhecermos mais sobre a humanidade a partir das
pesquisas sobre as relações entre os homens e os textos. O pesquisador é o
convidado do projeto “Literaturas: questões do nosso tempo”, que será realizado
nesta terça, no Sesc Palladium, dentro da programação comemorativa de cinco
anos do centro cultural.
Ao
lado do historiador Robert Darnton (diretor da biblioteca da Universidade de
Harvard), Chartier vai falar sobre os marcos e as transformações da prática
literária desde a invenção do codex – manuscrito que substituiu o
pergaminho.
Por
ter a história da leitura como foco principal de suas pesquisas, Chartier
passou a ser muito estudado não somente por estudantes de História, mas também
nos cursos de Educação e Letras. Com o Hoje em Dia, ele conversou sobre contemporaneidade e o
impacto das novas tecnologias sobre a história da leitura. Confira.
Houve muitos fatos históricos que contribuíram para a
popularização da prática de leitura ao longo do mundo moderno e contemporâneo,
como a invenção da imprensa e a universalização do ensino. Com a tecnologia e a
internet, vivenciamos novas mudanças. Quais contribuições e questões a
revolução digital tem trazido à prática de leitura na contemporaneidade?
Para
responder à sua pergunta, me parece que devemos pensar que a descontinuidade
existe inclusive nas aparentes continuidades. A leitura diante da tela é uma
leitura descontínua, segmentada, ligada mais ao fragmento que à totalidade. Não
seria talvez, por esse motivo, a herdeira direta das práticas permitidas e
suscitadas pelo codex? Esse último convida a folhear os textos, apoiando-se em
seus índices ou mesmo a “saltos e cabriolas” – à “sauts et gambades” como dizia
(o jurista Michel
de) Montaigne. É o codex, e não o computador, que convidou a
comparar diferentes passagens, como queria a leitura tipológica da Bíblia que
encontrava no Antigo Testamento prefigurações do Novo, ou a extrair e copiar
citações e frases, sentenças e verdades universais, assim como exigia a técnica
humanista dos lugares comuns. Contudo, a similitude morfológica não deve levar
ao engano. A descontinuidade e a fragmentação da leitura não têm o mesmo
sentido quando estão acompanhadas da percepção da totalidade textual contida no
objeto escrito, tal como propõe o codex, e quando a superfície luminosa da
tela, onde aparecem os fragmentos textuais, sem nos deixar ver imediatamente os
limites e a coerência do corpus (livro, número de revista ou de periódico) de
onde foram extraídos. A descontextualização dos fragmentos e a
continuidade textual, que não diferencia mais os diversos discursos a partir de
sua materialidade própria, parecem contraditórias com os procedimentos
tradicionais do aprender lendo, que supõe tanto a compreensão imediata como a
percepção das obras como obras, em sua identidade, totalidade e coerência.
Conforme o tempo passa, mais leitores o mundo ganha. O
Brasil, por exemplo, viu seu mercado editorial crescer muito nos últimos anos.
Mas além da quantidade, a qualidade da leitura vem se transformando ao longo do
tempo?
A
noção de “qualidade” da leitura pode ser muito subjetiva. A questão mais
essencial para mim é: como preservar maneiras de ler que construam a
significação a partir da coexistência de texto em um mesmo objeto (um livro,
uma revista, um periódico), enquanto o novo modo de conservação e transmissão
dos escritos impõe à leitura uma lógica analítica e enciclopédica, onde cada
texto não tem outro contexto além do proveniente de seu pertencimento a uma
mesma temática? Estas perguntas têm relevância particular para as gerações mais
jovens que, ao menos nos meios sociais com recursos e nos países mais
desenvolvidos, têm se iniciado na cultura escrita através da tela do
computador. Nesse caso, uma prática da leitura muito imediata e naturalmente
habituada à fragmentação dos textos de qualquer tipo se opõe diretamente às
categorias forjadas no século 18 para definir as obras escritas a partir da
individualização de sua escrita, a originalidade da criação e a propriedade
intelectual de seu autor. A aposta não é sem importância, pois pode levar
tanto à introdução na textualidade eletrônica de alguns dispositivos capazes de
perpetuar os critérios clássicos de identificação de obras como tal, em sua
coerência e identidade, quanto ao abandono desses critérios para estabelecer
uma nova maneira de compor e perceber a escrita como uma continuidade textual
sem autor ou copyright, no qual o leitor corta e reconstrói fragmentos móveis e
maleáveis.
A transformação digital também permitiu que todos se
tornassem não apenas leitores, mas também produtores de textos, mesmo que isso
aconteça apenas em redes sociais. Qual é o impacto disso em uma sociedade?
Me
parece que devemos distinguir três modalidades da revolução digital.
Primeiramente, a transformação dos textos que existem ou poderiam existir na
forma impressa e o processo que construiu coleção digitais ou que geralmente
fundamenta a edição digital. Em segundo, a criação de obras digitais
irredutíveis na forma impressa, tantas obras de ficção multimídia quanto
“livros” de saber que aproveitam as possibilidades hipertextuais e a
coexistência entre textos, imagens e materiais sonoros. Em terceiro, a
digitalização das experiências e conceitos mais fundamentais da existência
humana. Com as redes sociais, são as noções de identidade, intimidade, amizade
ou espaço público que se encontram profundamente redefinidas. Nunca devemos
esquecer que as discussões sobre o livro, a edição ou a leitura (no sentido
clássico) representam uma parte muito marginal da conversão digital de nosso
tempo.
A história da leitura é estudada por meio dos vestígios
deixados por leitores nos livros, como marcações nas margens, sublinhados e
assinaturas. É possível imaginar como será o estudo dos historiadores no futuro,
quando o foco do estudo estiver ligado ao século 21?
Também
deixa vestígios a leitura digital (por exemplo as anotações compartilhadas, as
discussões dos blogs ou dos “youtubers”, ou o que se escreve sobre as leituras
nas redes sociais), mas é verdade que estes vestígios também são ameaçados pelo
apagamento. E o mesmo com a escrita digital que deixa vestígios no computador,
mas vestígios que não se podem comparar com os documentos utilizados pela
crítica genética. Talvez para ajudar aos historiadores do século 21 seria útil
multiplicar hoje pesquisas sociológicas, dados estatísticos e observações
etnológicas sobre os leitores de hoje.
Há dez anos, o senhor esteve no Fórum das Letras, em Ouro
Preto, para realizar a conferência “A morte do livro”, em que tratava das
possibilidades do futuro do livro como obra e do livro como material. O que
mudou nestes dez anos sobre a sua percepção sobre o assunto?
Terminei
esta palestra com uma incerteza. Hoje me parece ainda mais justificada. Por um
lado, resiste o livro impresso no mercado do livro. Salvo nos Estados Unidos e
no Reino Unido, a porcentagem dos livros digitais nas vendas de livros nunca
supera 5%. Por outro lado, todas as “instituições” da cultura impressa se
encontram num estado de crise. Na Europa livrarias desaparecem a cada dia,
frente à concorrência dos supermercados ou da Amazon. No mundo todo, os jornais
têm grandes dificuldades econômicas. E as bibliotecas conhecem a tentação de
privilegiar as coleções digitais e afastar os leitores dos objetos impressos.
Dentro da longa duração da cultura escrita, toda mudança (o aparecimento do
codex, a invenção da imprensa, as várias revoluções da leitura) produziu uma
coexistência original de objetos do passado com técnicas novas. Pode-se supor
que, como no passado, os escritos serão redistribuídos entre os diferentes
suportes (manuscritos, impressos, digitais) que permitem sua inscrição, sua
publicação e sua transmissão. Resta, porém, o fato da dissociação de categorias
que constituíram uma ordem do discurso fundamentada sobre o nome do autor, a
identidade das obras e a propriedade intelectual e, de outro lado, o radical
desafio a essas noções no mundo digital. Podemos pensar e esperar como Umberto
Eco e Jean-Claude Carrière por um futuro no qual existiria uma coexistência das
varias culturas escritas. Mas acho que a verdadeira resposta não está nos
hábitos e desejos dos leitores que entraram no mundo digital a partir de suas
experiências como leitores de livros impressos. A resposta pertence aos
“digital natives” (nativos digitais) que identificam espontaneamente cultura
escrita e textualidade eletrônica. São suas práticas da leitura e da escrita,
mais do que nossos discursos, que vão decidir a sobrevivência ou a morte do
livro, o apagamento do passado ou sua presencia perpetuada.
Serviço: “Literaturas: questões do nosso tempo” com Robert
Darnton (EUA) e Roger Chartier (FRA). No Grande Teatro do Sesc Palladium (rua
Rio de Janeiro, 1046), terça (23), às 20h. Entrada gratuita
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