Autoria: Dorrit Harazim.
Fonte: O
Globo. Data: 17/01/2016.
Em artigo publicado esta semana na “Folha de S.Paulo”, o professor Luiz Armando
Bagolin, diretor da Biblioteca Mário de Andrade, lamenta o fato de pedras,
pichações e vandalismo voltarem a acertar a fachada da instituição. Já em 2013,
também no rastro dos protestos estudantis contra o aumento de tarifas do
transporte urbano, a mais importante e querida biblioteca pública de São Paulo
fora danificada por black blocks ou jovens sem-noção.Nem durante a chienlit de maio de 1968 em Paris as manifestações visaram bibliotecas públicas. Durante o interminável movimento Occupy, que em 2011 se alastrou por 600 comunidades nos Estados Unidos, e nas incendiárias respostas da população negra americana aos abusos da polícia branca ao longo de 2014 e 2015 também não.
Ainda bem, pois hoje mais do que nunca elas talvez sejam os últimos espaços não comerciais nem religiosos, nem partidários ou excludentes que ainda podem ser frequentados sem receio por qualquer tipo de cidadão.
Um aviso para quem pensa que a geração Google e Wikipédia não tem tempo nem interesse em explorar tais espaços: pelo menos em países desenvolvidos, eles continuam a florescer, adaptados aos tempos modernos, é claro. O Pew Research Internet Project, com sede em Washington, há quatro anos estuda a mudança de papel das bibliotecas públicas na sociedade dos Estados Unidos. Segundo seu último relatório, 90% dos frequentadores mais assíduos de bibliotecas também acessam a internet diariamente, 95% deles possuem telefone celular, 46% usam tablets ou computador e 33% leem livros em e-readers.
Ou seja, mesmo tendo ao alcance da mão todo um universo de informação digital, eles não se furtam ao hábito do convívio físico com o local. Representam 30% da amostra, o que não é pouco, e foram classificados como “amantes de biblioteca” e “onívoros de informação” pelo instituto Pew.
Dois anos atrás, a centenária New York Public Library (NYPL), tão reverenciada pelos nativos quanto as catedrais europeias o são pelos seus fiéis, deu um presente de fim de ano aos 30,8 milhões de visitantes de seu website.
A equipe de bibliotecários da instituição havia descoberto uma caixa contendo um tesouro de fichas referentes a consultas recebidas entre as décadas de 1940 e 1980. Além da pergunta, cada ficha continha a data da consulta, quem a recebera, se fora feita por telefone ou pessoalmente.
À época, como hoje, o sistema consistia em tentar atender o cliente de imediato. Quando isso se revelava impossível ou quando a fonte consultada não parecia 100% confiável, a consulta permanecia em aberto para apuração posterior — uma delas por exemplo, recebida em 1940, só conseguiu ser respondida 30 anos mais tarde.
O fichário encontrado pertencia a essa categoria de consultas pendentes, e a NYPL começou a fazer postagens semanais do precioso conteúdo no Instagram, com a hashtag #letmelibrarianthatforyou. Sucesso instantâneo.
Alguns exemplos dessas inquietações de antanho deixadas em aberto:
Qual o ciclo de vida de um cílio?
Os Estados Unidos têm qual porcentagem de banheiras existentes no mundo?
Existe alguma estatística sobre longevidade de mulheres abandonadas? (consulta recebida entre 1h e 2h da madrugada de 15 de fevereiro de 1963)
Quantos grãos contém uma tonelada de trigo?
Qual a espessura de um selo americano, já com a cola adicionada? Resposta: “Não conseguiremos fornecer a informação exata rapidamente. Sugerimos recorrer ao Serviço Postal dos Estados Unidos”. Tréplica: “Aqui é o Serviço Postal dos Estados Unidos.”
Para deleite de quem quer dar uma espiadela nessa cápsula do tempo — uma era em que humanos confiavam em outros humanos — há de tudo um pouco. No lugar de aplicativos para questões profundas, comezinhas, incompreensíveis, utilitárias, de etiqueta, existenciais, bastava um bibliotecário do outro lado da mesa ou da linha telefônica.
Eles eram o Google antes do Google existir.
Segundo a bibliotecária Rosa Caballeri-Li, ainda hoje a equipe de atendentes do Departamento de Referência e Pesquisa da NYPL continua a receber uma média de 1.700 consultas por mês, seja através de chat, e-mail ou telefone, em inglês ou espanhol. “Num país tão informatizado como os Estados Unidos”, explicou à época do lançamento da hashtag no Instagram, “pode soar espantoso as pessoas procurarem refúgio na NYPL. Mas quando há respostas em demasia na internet e você não consegue distinguir o que é ficção de fato, você se sente mais seguro recorrendo a nossos serviços”.
Ou, como já disse o escritor britânico Neil Gaiman, “se o Google te dá cem mil respostas, o bom bibliotecário vai te dar uma, a resposta certa”.
Na NYPL, nenhum atendente considera consulta alguma estúpida. Procuram responder sem arrogância. “Tudo pode ser transformado em momento de aprendizado para quem não sabe”, diz Caballeri-Li. “Não estamos aqui para constranger quem quer aprender”.
É claro que nem todas as bibliotecas públicas são uma NYPL. Tampouco precisam ou poderiam ser. Mas é bom ficar de olho no que resta das nossas. Nestes tempos de blocos nas ruas brasileiras, elas precisam e devem ser protegidas dos black blocks — protegidas tanto pela polícia como pelos estudantes.
Dorrit Harazim é jornalista
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